Um museu das artes de outras civilizações abre em Paris

O Museu do Quai Branly foi concebido como um instrumento social e político para que os visitantes acedam à problemática das relações do mundo europeu e do pensamento ocidental com o resto do mundo

As artes e as civilizações da África, da Ásia, da Oceania e das Américas têm agora um sumptuoso museu, que vai abrir em Paris a 23 de Junho. O santuário mundial das artes extra-europeias fica à beira do Sena, a dois passos da Torre Eiffel e chama-se Museu do Quai Branly. Esta obra será a herança cultural que o Presidente francês, Jacques Chirac, legará à França - e ao resto do mundo. Há já dez anos, o Presidente Chirac decidia criar um museu para homenagear devidamente as obras produzidas por civilizações da África, das Américas, da Ásia e da Oceania, e que, para o chefe de Estado francês, são tratadas com "incúria".
Mais do que a marca do poder político de um homem que terá sido Presidente durante 12 anos, o Museu do Quai Branly é um reflexo da verdadeira identidade cultural de Chirac. Apaixonado pelas artes primitivas - ao ponto de rejeitar esta apelidação e de exigir que o museu que lhes é agora dedicado em Paris seja designado oficialmente apenas pelo nome da sua morada, no cais Branly -, Jacques Chirac teve de batalhar contra os preconceitos da administração pública e dos meios culturais para impor o seu projecto.
Um grande especialista francês em artes primitivas ajudou Chirac: Jacques Kerchache, que faleceu em 2001, antes de ver o museu concluído, condenava também o preconceito da superioridade intelectual do Ocidente. Kerchache aplaudiu assim o Presidente Chirac quando este baniu da administração pública, e para sempre, um conservador de museu que ousou emitir dúvidas sobre a contribuição artística de "um desses povos que nem sequer sabem escrever".
O Museu do Quai Branly foi o epicentro de inúmeras polémicas e resistências. Mas, mesmo em tempos de rigor orçamental, o Estado teve de desbloquear os 233 milhões de euros que custou o projecto.
O edifício futurista, confiado ao arquitecto Jean Nouvel (ver caixa), é como uma casa lacustre que acabará engolida por um mar de verdura, quando as plantas e árvores do jardim tiverem crescido. Lá dentro, uma "floresta" de 550 vitrinas expõem em permanência 3500 objectos de todas as formas e feitios que o génio humano imaginou, realizadas em todos os materiais disponíveis - madeira, pedra, barro, têxtil - e para todo o tipo de usos, desde religioso e político às tarefas da vida diária. Mas, nas reservas, há mais 300 mil obras.
O lote mais importante veio do antigo Museu do Homem, e comporta peças muito antigas, como as pelas de bisonte pintadas, do século XVIII. Outro contingente de peças veio do ex-Museu das Artes de África e da Oceania. Estes dois espaços eram já muito poeirentos, concebidos no começo do século XX numa perspectiva etnológica ainda marcada pelas teses colonialistas. Por fim, houve oito mil aquisições do Estado francês, sob os conselhos de Jacques Kerchache, e quase todas financiadas por empresas que quiseram beneficiar das facilidades fiscais da lei do mecenato. A estátua africana "dogon" do século XI que recebe os visitantes à entrada, foi comprada assim pela seguradora Axa.
As polémicas não terminarão, certamente, com a inauguração do museu. Primeiro, sobre a aquisição das obras nos séculos anteriores: "Tenho vergonha de ir tirar ao homens da floresta da Amazónia, tão carentes de tudo, um pequeno utensílio cuja perda constitui para eles uma privação irreparável", escrevia em 1955 o etnólogo Claude Lévi-Strauss, em Tristes Tropiques.
Mas para Stéphane Martin, conservador do Museu Branly, o novo museu não será apenas um santuário, mas sim um espaço vivo: "É uma memória restituída a todos, que será um verdadeiro centro activo de investigação histórica e antropológica que mostrará o pensamento que os objectos expostos abrigam."
Para se chegar ao novo Museu do Quai Branly, em Paris, basta ir até à Torre Eiffel. De frente para ela, à beira do rio Sena, vira-se à esquerda, no cais Branly e, não muito longe, vê-se um edifício vermelho, protegido do barulho atrás de um muro de vidro e de verdura. Comparada a um veleiro de 12 metros de alto e 200 metros de comprido, a construção saiu da imaginação do arquitecto Jean Nouvel, como "um asilo onde se recebem as obras censuradas ou desprezadas". O conjunto tem quatro edifícios. O primeiro, o museológico, possui cinco níveis e declina-se em espaços com geometrias variáveis, alguns dos quais parecem ter sido projectados para fora da fachada: são os 32 "caixotes" de cores vivas e de tamanhos diferentes, cada qual servindo de estojo a uma obra particularmente rara ou preciosa. O segundo edifício é administrativo e desaparece por debaixo de 150 variedades diferentes de plantas. Entre os dois, e ligado a cada um deles por corredores de vidro, fica o edifício Auvent ou Samourai, que abriga a mediateca e as salas de leitura. Por fim, o edifício Universidade, em vidro e pedra, alberga os ateliers de restauração das obras. No seu todo, "este local deve ser lido como um convite à descoberta e aos novos encontros", diz Jean Nouvel. A.N.P. Paris

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