György Ligeti (1923-2006) Um espírito independente
O compositor de origem húngara e naturalizado austríaco legou-nos uma das produções musicais
mais fascinantes e originais do século XX. Compositores e musicólogos portugueses são unânimes
na avaliação da importância maior da sua obra. Por Cristina Fernandes
A personalidade independente e o fascinante mundo musical criado pelo compositor de origem húngara (naturalizado austríaco) György Ligeti deixou uma marca singular de longo alcance na história da música do século XX. A notícia da morte de Ligeti, que tinha completado 83 anos no dia 28 de Maio, foi divulgada ontem por uma agência de notícias austríaca citando a sua editora musical alemã, Schott Music, sem precisar o dia e o local do seu falecimento. Nos últimos tempos, o compositor repartia a sua residência entre Viena e Hamburgo e encontrava-se num estado precário de saúde.
Espírito curioso, atento ao passado e ao presente e às múltiplas dimensões do som, Ligeti construiu um percurso pessoal original que se distancia quer do carácter hermético das vanguardas (não obstante o rigor e a profundidade do seu pensamento), quer do facilitismo de muitas manifestações do pós-modernismo (ver caixa). Ao mesmo tempo que era reconhecido como uma das figuras mais influentes da sua geração na exploração de novos caminhos, a sua música chegava também a um público amplo não especializado através do cinema de Stanley Kubrick, que escolheu obras suas para as bandas sonoras de filmes como 2001: Odisseia no Espaço, The Shinning ou De Olhos Bem Fechados.
Nascido na Hungria (em Dicsöszentmárton, actualmente Tirnaveni, na Transilvânia, actual Roménia) em 1923, Ligeti iniciou os seus estudos musicais no Conservatório de Klausenburg, prosseguindo-os a partir de 1945 na Academia de Budapeste. Durante a II Guerra Mundial, quando a Hungria foi ocupada pelos nazis, Ligeti sobreviveu ao Holocausto, que destruiu a sua família, de origem judaica. Em 1956, na altura em que as tropas soviéticas esmagaram a Revolução Húngara, o compositor abandonou Budapeste. Foi então que entrou em contacto com a vanguarda europeia. Entre 1957 e 1958, trabalhou no Estúdio de Música Electrónica da Rádio Alemã, em Colónia, e, entre 1959 e 1972, ensinou nos Cursos de Darmstadt.
Mantendo-se sempre atento aos desenvolvimentos musicais que o rodeavam, o seu percurso criativo assumiu, contudo, um carácter único. Apesar da sua ligação com os dois núcleos que ditavam as leis da vanguarda musical (Colónia e Darmstadt), e do seu interesse por experiências decisivas dos anos 1940 e 50, como o serialismo e a música electrónica, Ligeti desenvolveu uma trajectória individual, recusando qualquer submissão à rigidez de um sistema.
A sua afirmação como compositor dá-se no início dos anos 1960, através de duas obras orquestrais - Apparitions (1959) e Athmosphéres (1961) -, que assinalam a sua aproximação a um tipo de polifonia capilar (micropolifonia) e estratificada que tende a estender-se na totalidade do espaço acústico e que continuaria a ser desenvolvida em obras como o Requiem (1963-65), Lux aeterna, para 16 vozes (1967), e Lontano (1967).
Das paisagens sonoras quase estáticas de Athmosphéres ao sentido de humor jocoso dessa deliciosa fantasmagoria apocalíptica que é a ópera Le Grand Macabre (1977), passando pelos mecanismos rítmicos do Segundo Quarteto de Cordas (1968), Ligeti passaria a incorporar nas obras dos anos 1980 e 90 princípios musicais inspirados na riqueza rítmica das culturas musicais extra-europeias e um pensamento conceptual moldado pelos desenvolvimentos tecnológicos recentes em obras que recorrem apenas a intrumentos tradicionais. Entre as suas composições mais relevantes dos últimos anos, encontram-se os Estudos para Piano (provavelmente a mais importante obra escrita para este instrumento no último meio século), o Concerto para piano, a Sonata para viola solo ou o Concerto para violino.
No próximo sábado, às 21h, o Remix Ensemble dará a ouvir, sob a direcção de Peter Rundel, Mysteries of the Macabre, na Casa da Música, regressando à música de Ligeti ao Porto no dia 8 de Julho. Ainda na Casa da Música, no dia 23 de Julho, a Nothern Sinfonia interpreta Ramifications.
"Um modernismo
de hoje"
Em 1985, Ligeti escreveu um texto (publicado em 1990 na revista Contrechamps nº 12-13) que continua a ter grande pertinência quando pensamos nos dilemas que se colocam aos compositores do nosso tempo. Aqui deixamos um excerto: "Vivemos num período artístico pluralista. Enquanto o modernismo e mesmo a vanguarda experimental continuam a existir, manifestam-se cada vez mais movimentos artísticos "pós-modernos". "Pré-modernos" seria todavia um termo mais correcto para os designar, porque os artistas que neles se incluem se interessam pela restauração de elementos e formas históricas: o naturalismo em pintura, as colunas e cúpulas em arquitectura, uma tonalidade retomada bem como figuras rítmico-melódicas impregnadas de pathos expressionista na música. Esta reacção "rétro", depois de um período de experimentação e de modernidade, é compreensível, tanto como o pathos subjectivo sucedendo a uma era construtivista; compreensível, mas não perdoável. (...) O modernismo e a vanguarda experimental dos anos 1950 ou 60 não pertencerão também à história, à "academia"? Rejeitando simultaneamente o "rétro" e a antiga vanguarda, declaro-me por um modernismo de hoje".