Entre o palco e a rua
Os primeiros minutos da peça são magníficos. Na obscuridade do palco, três rectângulos de luz jogam fugazes interacções com figuras que executam movimentos vertiginosamente acrobáticos. Giram de cabeça sobre o chão em equilíbrios impensáveis, nítidas alusões ao hip-hop. Se o ponto de partida era claro - combinar a dança de rua com uma estética contemporânea, alimentando uma a partir da outra -, a expectativa também era elevada: além dos prémios de revelação obtidos (Ballett Tanz, 2005), alguma crítica internacional referia uma revolução na dança hip-hop, assinalava mais um sintoma do retorno da dança contemporânea ao movimento, depois das décadas da dança-teatro, e equiparava o coreógrafo brasileiro Bruno Beltrão, de 26 anos, à influência renovadora de Forsythe (n. 1949) no ballet.Percorrendo a trajectória comum a muitos praticantes, Beltrão inicia-se no breakdance aos 13 anos nas ruas de Niterói. Três anos volvidos, em 1996, cria o Grupo de Rua de Niterói (GRN) com o objectivo de representar a sua cidade nos encontros da modalidade. Insatisfeito com a vertente predominantemente acrobática do hip-hop, acabaria por se dedicar à expansão da sua estética e vocabulário, perspectiva para a qual foi determinante o ingresso na Universidade de Dança do Rio de Janeiro.
Na linha já esboçada na passagem por Lisboa em 2002, H2 2005 representa bem este distanciamento exploratório e reflexivo. O ritmo performativo desacelera e a coreografia envereda pela dissecação dos códigos da dança de rua: amplia a relação do movimento com o espaço, diversifica registos rítmicos e sonoros - a banda sonora incorpora Rimsky Korsakov, Nana Vasconcelos e o beat de CQMD -, introduz zonas de silêncio, detém-se sobre a subtileza das energias do corpo, parecendo por vezes interpelar o tai chi chuan, ou opções de composição onde se reconhece um tributo a Cunningham.
Beltrão recontextualiza referências ao círculo do breakdance, lugar de exibição pujante de uma fisicalidade viril, onde se misturam vagos ecos de África e jazz e imagens de corpos robóticos. Os movimentos figuram competições ritualizadas, são originários da cultura marginal das grandes periferias urbanas e porventura encontram raízes comuns à capoeira e outras formas masculinas de dança popular. Se este imaginário se prolonga na opção por um elenco exclusivamente masculino, busca-se a subversão dos estereótipos sociais associados quando, por exemplo, entre a provocação e o humor, cinco pares de bailarinos alinhados na boca de cena executam um longo e intenso beijo.
Num momento em que a dança contemporânea se debate com as possíveis saídas para o impasse que a sua própria evolução gerou, os trilhos do GRN são promissores. H2 2005 responde parcialmente a esta avidez de frescura ao dispor-se a explorar, de forma inteligente, embora nem sempre encontrando soluções coreográficas e timings de composição eficazes, este novo e complexo interstício que se situa entre erudição e cultura popular. Logre o GRN gerir a pressão do sucesso e da expectativa gerada e poderemos estar perante o início de um caminho novo.