O ressurgimento da comunidade judaica do Porto
Os judeus do Porto recomeçam a ressurgir enquanto comunidade. Depois de terem conseguido que uma padaria cozesse pão próprio para o "shabbat", mobilizam-se para ter um cemitério e uma escola judaicos.
Casaco preto a destoar do calor do forno, kippah na cabeça e barbas fartas, Elisha Salas observa com atenção religiosa o vaivém das mãos de Noémia Bessa sobre a massa. Esta tem que levedar antes de ser entrançada e posta a cozer. Antes disso, o rabino retira uma pequena porção que leva a queimar. "Simboliza a oferenda ao templo", explica, interrompendo a oração com que os judeus vão "santificando a vida". Noémia Bessa assiste com um sorriso à explicação. A presença de um rabino na sua padaria tornou-se num ritual das quintas-feiras de manhã. Pelo menos desde que, há três meses, a sócia-gerente da Confeitaria Doção, na Rua do Barão de Forrester, no Porto, aceitou tornar-se na única padeira do país a confeccionar pão judeu. "É tudo feito com produtos de origem vegetal. Quem prova, fica cliente", garante.
Elisha Salas vai escrevendo Shabat Shalom nos sacos de papel que hão-de acompanhar o pão aos clientes. "Um sábado de paz", traduz, para os menos acostumados aos ritos judaicos. Noémia Bessa vai-se tornando especialista e, com ela, muitos dos que começaram nos últimos tempos a querer aderir à comunidade judaica do Porto.
É a partir da sinagoga, no nº 340 da Rua de Guerra Junqueiro, que Elisha Salas se propõe retomar a obra do resgate dos cristãos-novos ou marranos - nome por que são conhecidos os judeus que, obrigados a converter-se ao cristianismo, continuaram a praticar o judaísmo em segredo. Trata-se, afinal, de dar continuidade ao desígnio que levou o capitão Artur Barros Basto a fundar a comunidade judaica do Porto e a erigir a sinagoga, nas décadas de 20 e de 30.
Após a morte do capitão, em 1961, a comunidade cedeu às lutas internas e a "catedral judaica do Norte" fechou-se aos cada vez menos judeus praticantes a residirem no Porto. Há dois anos, Elisha Salas - um natural do Chile que já passou pelos Estados Unidos e por Belmonte - foi convidado a assumir o papel de rabino residente no Porto. De então para cá, retomaram-se os rituais do shabat, do pessach e a leitura da torah.
"No shabat [sábado, dia de descanso para os judeus], temos semanalmente trinta a quarenta pessoas a participar activamente. Há muitos mais, que não vêm porque julgam que a sinagoga está fechada. No kipur [dia do perdão] do ano passado, tivemos a sinagoga cheia", conta Elisha Salas, que quer criar as condições necessárias para que os judeus recuperem o lugar de encontro e o sentido de comunidade.
"Há várias famílias judaicas que trabalham e fazem vida normal no Porto, mas que são pouco activas na prática religiosa. Agora a comunidade está a renascer, de forma regrada e com muita força", garante. O rabino ministra lições de hebraico aos "muitos que começam agora a perder o medo e a querer investigar e recuperar as origens judaicas", os tais marranos. E, com a ajuda de organizações israelitas, como a Shavei Israel, começam a chegar as verbas para a recuperação do mikveh - o balneário anexo à sinagoga.
Apareceram, nos últimos tempos, no Porto, várias associações voltadas para a promoção do regresso ao judaísmo ou simplesmente para o seu estudo. A associação cultural Sefarad nasceu em Dezembro de 2005 com o propósito, entre outros, de criar um centro de estudos sefarditas e um congresso internacional do judaísmo na cidade. Não tem inspiração religiosa, esclarece uma das responsáveis, Ana Macedo Lima, estando interessada em resgatar a memória do judaísmo. "Há um passar ao lado da memória dos judeus no Porto, também porque fenómenos como a Inquisição ou a perseguição religiosa não são algo de que nos possamos orgulhar ou sequer que se ensine muito nos bancos da escola", explica.
"Apesar de ser uma cidade onde sempre se respirou judaísmo, a questão ainda incomoda as pessoas. Há um anti-semitismo latente que perdura", acrescenta Jorge Neves, presidente da Ladina - Associação de Cultura Sefardita. Com meia centena de associados e dois anos de existência, esta associação, com sede na Rua Nova da Alfândega, vai realizar, em Setembro, o primeiro Oporto Ladino Festival, para comemorar o ano novo judaico. "Queremos dar a conhecer a influência dos judeus na nossa cultura e na nossa história, sobretudo agora, que a comunidade judaica está a recrudescer com gente nova, na casa dos 20 e 30 anos", diz Jorge Neves, para quem "o Porto voltou a ser alvo das atenções da comunidade internacional por causa da questão do regresso dos marranos".
Acresce, segundo Neves, que "há muitas famílias que se refugiaram cá por alturas da Segunda Guerra Mundial que se afastaram da prática religiosa, porque não tinham condições. De há dois anos para cá, estão a ser criadas as condições para a prática do judaísmo na cidade: com as cerimónias regulares na sinagoga, o lançamento de produtos kosher, as pessoas começam a falar..."
Mais comedido, Dayle Jeffries, presidente da comunidade israelita do Porto, alerta que os judeus foram e serão uma minoria, pelo que não perspectiva um grande crescimento da comunidade. "Em Portugal, por causa da Inquisição, da conversão forçada e do período ditatorial, as pessoas habituaram-se a praticar um "judaísmo de armário". Assiste-se a um movimento de correcção da história, que roubou algumas gerações aos judeus, mas estaremos sempre a falar de uma mão-cheia de sobreviventes que procuram recuperar o seu passado", caracteriza, dizendo que "o medo de ser judeu" é um sentimento enraizado entre os portugueses.
Na Padaria Doção, Noémia Bessa não sentiu medo ou preconceito que a impedisse de investigar as suas origens, em busca de algum antepassado judeu. "Penso que não, mas o meu avô era de muito perto de Belmonte...", admite. Por enquanto, limita-se a dar corpo e a ajudar à disseminação do pão kosher. "É tudo muito natural." E não é com pão e vinho que se faz o caminho?