Empresa dos Estaleiros de São Jacinto com morte anunciada
Nascida na década de 1940, a empresa dos estaleiros está perto do fim. A insolvência já foi decretada em tribunal e os créditos somam sete milhões de euros. Longe de um final feliz, restam as boas recordações de quem viveu os tempos áureos dos estaleiros, que chegaram a empregar entre 500 a 600 trabalhadores.
"Mágoa" e "tristeza" são as palavras mais proferidas por Manuel Ramos e Augusto Melo, ex-trabalhadores dos Estaleiros de São Jacinto, de cada vez que são levados a comentar o desfecho da unidade de construção naval aveirense. A falência recentemente decretada pelo Tribunal de Aveiro já era esperada, mas, agora, que está confirmada, veio agudizar a dor de ver desaparecer aquele que foi "um dos estaleiros mais importantes a nível nacional" e que chegou a empregar "cerca de 500 trabalhadores". Para trás fica mais de meio século de laboração, repleto de momentos "áureos" e de "esplendor". Disso foi exemplo a construção de grandes navios de pesca longínqua, como o Pascoal Atlântico e o Santa Isabel, e a concretização das muitas encomendas que chegavam do estrangeiro.
Uma vida a construir barcos
Para quem apenas conhece as imagens dos anos de crise e decadência dos Estaleiros de São Jacinto, que se vêm arrastando desde 2003, parece ser difícil acreditar nas palavras de Manuel Ramos. "Trabalhei na construção de aproximadamente 150 navios", afiança o homem que entrou para a unidade de construção naval aveirense com apenas 15 anos e onde acabou por ficar a trabalhar ao longo de 43 anos. "Chegávamos a fazer quatro ou cinco arrastões costeiros por ano", sustenta ainda o trabalhador que começou a contactar com os estaleiros ainda criança, por força de o seu pai também ter sido funcionário da casa.
Augusto Melo também herdou do pai a tradição de trabalhar na construção naval, mais concretamente nos estaleiros que, durante várias décadas, deram vida à pacata freguesia de São Jacinto, separada do resto do concelho por um braço da ria. "À hora de almoço e ao final do dia, era um movimento enorme, com os trabalhadores a saírem dos estaleiros", recorda, a propósito dos momentos de grande pujança da empresa, na qual laborou durante 40 anos. "Chegaram a trabalhar lá cerca de 500 a 600 pessoas", precisa Melo.
Depois de várias décadas de dedicação à unidade de construção naval, tanto Manuel Ramos como Augusto Melo garantem guardar muitas e boas memórias. O primeiro elege os momentos de "bota-abaixo" dos navios ali construídos como os mais marcantes. "Era sempre uma festa", afiança Ramos, quando recorda o ritual que envolvia "a bênção do navio por um padre" e "a garrafa de champanhe partida na proa", antes de a embarcação ser lançada à água. Já Augusto Melo garante preferir as memórias da azáfama da década de 70, quando "os estaleiros construíam muitos navios". A melhor recordação de todas parece ser comum a ambos e, segundo asseveram, é extensível a todos quantos dedicaram grande parte da sua vida a esta empresa: "Os laços que todos nós criámos à volta daquela casa".
Dias de criseOs momentos de glória há muito que passaram, mas o passar dos anos parece não ter beliscado a memória destes dois ex-funcionários, que recordam ao pormenor o nome de cada um dos navios construídos. E dizem-se até capazes de lembrar o número da licença de construção de cada um deles. A lista de embarcações é vasta, por isso, Manuel e Augusto ficam-se pelos mais emblemáticos. "O Pascoal Atlântico e o Cidade de Amarante foram os últimos grandes navios a serem construídos nos estaleiros", frisam, ao mesmo tempo que juntam ainda à lista as muitas encomendas do estrangeiro, em especial da Noruega, o país de onde veio também um projecto muito especial: o Geobay, o primeiro navio geofísico construído em Portugal.
A intervenção que compreendeu a readaptação daquele que tinha sido, durante vários anos, o maior rebocador do Mundo levou, em 1999, os Estaleiros de São Jacinto para as primeiras páginas dos jornais, mas parece não estar no topo das preferências dos trabalhadores da empresa. O motivo? A transformação deste navio é tida como o início do fim dos estaleiros, que tinham acabado de recuperar da crise financeira de 1994. "Nessa altura, a crise aconteceu por falta de trabalho, pois não havia encomendas", relata Manuel Ramos. Os estaleiros conseguiram, porém, salvar-se. "A segunda crise veio em 2000, por alturas da construção do Geobay", declara o ex-funcionário, a propósito dos problemas suscitados pelo facto de a intervenção no navio geofísico ter obrigado a uma série de trabalhos a mais que não terão sido pagos na sua totalidade. Além de que esta construção levou os estaleiros a "atrasar a construção de quatro navios para a Noruega", demora essa que fez com que a empresa de construção aveirense tivesse de suportar "multas elevadíssimas".
Queda acentuou-se
em 2002
Os anos seguintes não foram nada auspiciosos para os Estaleiros de São Jacinto. No final de 2002, os problemas acentuaram-se. "Começámos a ter salários em atraso", sublinha Manuel Ramos, ao mesmo tempo que recorda que a situação criou sérias dificuldades a vários trabalhadores. "Havia casais em que marido e mulher dependiam dos estaleiros", acrescenta Augusto Melo. Cada um foi-se "defendendo" conforme podia, mas em 2003 grande parte dos operários acabou por ceder. "Não aguentámos e saímos praticamente todos", declara Manuel Ramos, credor de cerca de "20 mil euros de salários em atraso". No caso de Melo, o montante a receber é de "13 mil euros".
A falta de "respostas" por parte da administração levou os ex-trabalhadores a recorrerem ao tribunal para serem ressarcidos dos seus créditos, num processo que culminou agora com o decreto de falência. O desfecho final parece provocar um misto de alívio e de dor. "A pior coisa que me podia acontecer é eu ser o próprio coveiro do estaleiro", desabafa Manuel Ramos, a propósito do sentimento produzido pela forma como a empresa chegou ao fim. Talvez por isso mesmo é que este ex-trabalhador deixou de passar junto às instalações da empresa. "Volta e meia, vou a São Jacinto, mas não consigo ir aos estaleiros", assegura.
Augusto Melo, pelo contrário, continua a marcar presença e a visitar as instalações onde trabalhou durante quatro décadas, apesar de reconhecer que "custa ver o estado de abandono a que aquilo chegou". Especialmente, a partir do momento em que Augusto se deparou com uma imagem que jamais conseguirá esquecer. "Cheguei lá um dia e vi o sucateiro a levar todas as máquinas que tinham sido penhoradas. Custou muito essa imagem", lamenta.
Muito embora a situação da empresa pareça ter entrado num ponto sem retorno, estes dois ex-funcionários acreditam que os Estaleiros de São Jacinto até podiam ter conseguido superar a crise, não obstante o facto de as encomendas de navios de pesca continuarem a escassear. "Teria que ter tido uma grande remodelação, ajustando os estaleiros às novas exigências do mercado. E, se calhar, também não teriam tantos trabalhadores. Mas podia ter sobrevivido", argumentam Manuel e Augusto, quando desafiados sobre a possibilidade de a empresa fundada em 1940, pelo empresário Carlos Roeder, ter continuado a laborar.
Numa altura em que muitos não hesitariam em apontar culpados para a situação a que chegaram os estaleiros, estes dois ex-funcionários preferem "olhar para o bloco", sem apontar o dedo a alguém em concreto. "A administração não cumpriu com as responsabilidades para com os trabalhadores", lamentam, ao mesmo tempo que fazem ainda o reparo ao Ministério das Finanças. "O processo de recuperação da empresa estava em curso e as Finanças foram aos estaleiros e retiraram as máquinas. Não se compreende", desabafa Manuel Ramos.