Tânia Carvalho estreia peça em que o rosto é o que mais dança

Em Orquéstica, a coreógrafa trabalhou pela primeira vez sem tema. O resultado é abstracto e inquietante

À partida, o nome que Tânia Carvalho escolheu para a peça que hoje se estreia na Culturgest, Orquéstica, pode parecer enigmático. O mais natural, aliás, é que a maioria das pessoas o associe à música e não ao movimento. A coreógrafa gosta da ambiguidade: "Este trabalho está ligado à música e aos ritmos do corpo, não parte só do movimento."
Orquéstica - que o dicionário de língua portuguesa define como "a arte dos movimentos rítmicos do corpo" ou "a arte da dança" - é uma peça para oito intérpretes em que Tânia Carvalho, 29 anos, uma das coreógrafas portuguesas mais interessantes da sua geração, teve oportunidade de experimentar, sem ser obrigada a alterar profundamente o seu método de composição.
"Este projecto trouxe-me muitas novidades mas, no essencial, mantive o processo de criação a que me habituei", diz Tânia Carvalho. "Escrevi em rigor todos os movimentos dos corpos dos bailarinos. Só as expressões da cara são deles."
Em palco, há oito intérpretes que começam por se entregar a sequências lentas, em que séries de gestos em cadeia, alguns quase imperceptíveis, parecem formar um ensaio sobre a queda ou o peso de um corpo. Pouco a pouco, a atenção desvia-se dos movimentos angulosos, executados em silêncio, para os rostos dos intérpretes.
Tânia Carvalho sabia desde o início que queria explorar as expressões dos bailarinos, um desejo que lhe ficou do solo que fez no ano passado durante o curso de coreografia da Fundação Gulbenkian. "Desta vez queria começar pela cara, um percurso inverso ao que faço habitualmente. A maioria dos coreógrafos trabalham primeiro o resto do corpo e só se preocupam com ela no fim."
A coreógrafa foi escrevendo a partitura coreográfica a partir do seu próprio corpo e acabou por deixar muito pouco espaço à improvisação dos intérpretes, que pela primeira escolheu em audições internacionais.
"Nas criações anteriores trabalhei sempre com bailarinos que já conhecia. Aqui tive de escolher. Foi muito doloroso ter de dizer a um intérprete que não tinha as características necessárias."
Tânia Carvalho procurou essencialmente bailarinos que estivessem habituados a dançar e que fossem muito diferentes uns dos outros, para que "o olhar do público saltasse com facilidade de intérprete para intérprete".
A coreógrafa, que também faz parte do elenco, optou pelos portugueses Luís Guerra, Constança Couto, Elizabete Magalhães e Jácome Filipe; pelo alemão Andreas Merk, o japonês Kojiro Imada e a cabo-verdiana Marlene Freitas.

Medo das palavrasO facto de não conhecer alguns dos bailarinos criou dificuldades durante o processo, explica Tânia Carvalho. "É difícil passar-lhes o que tenho na cabeça porque falo muito pouco. Sei o que quero, mas não consigo transmiti-lo por palavras, até porque tenho medo delas. Raramente chegam para descrever um movimento ou uma intenção."
Orquéstica, a peça que apresenta no Festival Alkantara (ver caixa), acaba por ser marcada pelas expressões que a coreógrafa deixou ao cuidado dos intérpretes, que passam quase 40 minutos a fazer estranhos movimentos com os olhos ou a boca. Podem identificar-se expressões recorrentes em cada um, embora não tenha havido qualquer preocupação em criar personagens.
"Esta é a primeira peça que faço sem um tema", diz Tânia Carvalho. "É totalmente abstracta." A coreógrafa quis lidar com o corpo como um pianista com o seu piano - o instrumento está lá e é capaz de produzir sons. Pode fazê-lo de acordo com uma partitura ou sem ela.
Os movimentos que desenhou para os corpos e as expressões faciais que os intérpretes lhes acrescentaram não têm qualquer significado. "Só quis pôr-nos a dançar com a cara."

Orquéstica
Ideia original e coreografia de Tânia Carvalho. Com Tânia Carvalho, Andreas Merk, Constança Couto, Elizabete Magalhães, Jacome Filipe, Kojiro Imada, Luís Guerra e Marlene Freitas.
LISBOA. Culturgest. R. Arco do Cego, Ed. CGD. Hoje e amanhã, às 21h. Tel.: 217905155. Bilhetes a 5 e 10 euros.

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