Festival Alkantara começa no quarto de Isabella
Espectáculo de abertura do festival, de hoje a 18 de Junho, cruza teatro, dança, música e um "museu" de etnologia.
É Isabella"s Room, do flamengo Jan Lauwers e da sua NeedCompany
A ocupar o palco de Isabella"s Room, espectáculo do flamengo Jan Lauwers e da sua NeedCompany, há uma centena de objectos que podiam estar num museu etnológico. Vêm de uma colecção de mais de três mil objectos de arte africana, indiana e latino-americana. Podia ser, mas não é um espectáculo do género "o museu vai ao teatro", até porque acima de tudo estas preciosidades, algumas com três mil anos, estão lá por razões afectivas: pertencem à colecção do pai de Jan Lauwers, médico e coleccionador, a quem Isabella"s Room presta homenagem póstuma.
É o espectáculo que abre hoje (no Teatro Municipal São Luiz) o Festival Alkantara, em Lisboa, o "novo" Danças na Cidade, agora com mais teatro (ver suplemento Y de hoje). É , assim, bem simbólico do espírito de fusão do festival: Isabella"s Room é teatro-dança-musical em alguns momentos, só teatro ou só dança ou só musical noutros. Repete amanhã, no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa.
Ao telefone, Jan Lauwers, de 49 anos, conta que este é o mais emocional dos seus espectáculos. Baseado num texto escrito depois da morte do pai e a partir dos seus diários pessoais - "foi interessante andar a bisbilhotar", ironiza -, Isabella"s Room é um espectáculo autobiográfico que mistura ficção. Nele, Jan Lauwers fala de si - mas não quer entrar em pormenores - e, obviamente, do seu pai.
Embora a colecção tenha objectos de vários continentes, a África, onde a Bélgica esteve presente, está em maioria no espectáculo. "O meu pai vem dessa geração de colonizadores e era completamente obcecado por África", diz o encenador. Ter estas obras em cena dá uma "certa energia e a arte é sempre energia". "John Cage [músico] disse que era preciso ter cinco energias ao mesmo tempo no palco, e eu ainda acredito nisso."
Uma história do século XXComo o título indica, a figura central no quarto é Isabella, interpretada pela actriz Viviane De Muynck. Isabella é uma mulher de 90 anos, cega e sozinha, que revê a sua vida e portanto também a história do século XX, com personagens a entrarem e a saírem de cena. Começa na I Guerra Mundial, passa pelo Holocausto, pelas histórias de África, por Picasso, por Breton, por pais adoptivos, príncipes do deserto, e chega aos nossos dias. Mas, apesar deste pano de fundo histórico e apesar da presença africana poder ter uma leitura política - "África está muito próxima de nós e temos medo das pessoas que vêm de lá" -, o director diz que "a aproximação" aos factos é "muito pessoal".
Emotivo, dramático, divertido, Isabella"s Room (que só vimos em vídeo) distancia-se dos espectáculos anteriores do encenador flamengo, mais negros. Diz o próprio: "Precisava de ter alguma luz no meu trabalho. A sociedade agora é tão negra... Pensei: "Vamos fazer uma coisa de que as pessoas se possam lembrar, mas que também as faça sentir bem"".
Ter uma história linear para contar em palco é outra "novidade" no trabalho do encenador, que recorria a "histórias crípticas", "muito influenciado" pelo escritor irlandês James Joyce. Isabella"s Room, nesse sentido, é mais um texto à Gabriel García Marquez: "Cem Anos de Solidão e Ulysses são dois livros muito bem escritos, mas García Marquez chega a mais público."
Quando este espectáculo esteve, em 2004, no Festival de Avignon, França, um dos mais importantes acontecimentos teatrais europeus, o jornal Libération escrevia que "quando um programador quer ultrapassar a tradicional clivagem entre dança e teatro, convoca os belgas flamengos". E acrescentava: desde Jan Fabre, nos anos 1970, que os flamengos são "traficantes" de estilos, sendo tanto performers como encenadores e coreógrafos, videoastas, artistas plásticos, autores. Jan Lauwers comenta: é escritor, é artista plástico, faz filmes, faz música, tem dança nos seus espectáculos, mas tudo começa na escrita. E o que ele faz é teatro, ponto final. Aliás, Lauwers confessa que não tem a certeza de que um encenador seja um artista: "Quando um encenador parte de um texto de Shakespeare ou de Ibsen, eles é que são os artistas: o encenador faz um comentário. Eu começo de uma páginas em branco: escrevo, faço as luzes, desenho o cenário.... É uma aproximação total."