Cartas na mesa

Não entendo o agastamento de Emídio Rangel quando lhe recordam a célebre frase segundo a qual uma televisão com 50 por cento de quota de audiência pode, se quiser (atenção: se quiser...), "vender" um Presidente da República tal como vende um sabonete. Eu acho que ele acredita mesmo nisso - e ele sabe do que fala... Mais: eu próprio também acho que isso é potencialmente verdade, e não só por causa das televisões. Estamos fartos de ver como alguns políticos desejosos de "passar" na opinião pública se transformam eles próprios em "sabonetes" (mudam o penteado, os óculos, as gravatas, fotografam-se com a família ou com o cão, ajustam o discurso), contratando serviços de marketing em tudo semelhantes aos dos produtos de cosmética, ou de automóveis, ou de cervejas. E, claro, também há televisões que alinham, mais ou menos conscientemente, neste comércio. Emídio Rangel, arrisco, só se sente desconfortável por ter vindo a público, de maneira nua e crua, o que ele pensará de facto em privado.Não entendo também o agastamento de Manuel Maria Carrilho por ter sido visto e revisto nos ecrãs o seu sinceríssimo gesto de não apertar a mão a Carmona Rodrigues no fim do tal debate televisivo. Era isso mesmo que ele queria fazer, era isso mesmo que ele achava que devia fazer: não retribuir o cumprimento do adversário, por se sentir ofendido. Tudo bem, se achava que tinha razão. E, pelos vistos, ainda acha. Então, se acha, por que se queixa? Só porque queria ter feito o que fez, mas sem ninguém ver?... Seria hipocrisia cumprimentar Carmona, se não estava para aí virado. Mas também parece hipocrisia não o cumprimentar e, depois, não assumir publicamente, sem desculpas, a frontalidade do gesto. Se "quem não se sente não é filho de boa gente", também "quem não quer ser lobo não lhe veste a pele".
Finalmente, não entendo o agastamento de muitos jornalistas quando se diz que as agências de comunicação "metem" notícias nos jornais. Então não é verdade?... Se uma agência a trabalhar para uma grande empresa telefona a um jornalista e lhe diz que tem uma novidade sobre um empreendimento que a empresa vai lançar, oferecendo-lhe a notícia em primeira mão e garantindo que terá o seu exclusivo, o jornalista diz que não quer?... Sabemos que não é assim. Ele habitualmente aceita, todo satisfeito com a cacha, publica-a e até faz um brilharete junto da concorrência. No dia seguinte, a agência de comunicação vai ter com a empresa para quem trabalha - e de quem naturalmente recebe dinheiro -, mostra o recorte ao patrão e, implicitamente, dá-lhe a entender que foi quem conseguiu fazer sair a notícia no jornal, valorizando assim a sua posição. Isto, sabe quem anda nos jornais, acontece todos os dias. É corrupção, é tráfico de influências, é falta de ética? Não necessariamente. Pode ser ou pode não ser, depende de muita coisa.
Em resumo: vamos discutir estes assuntos, importantes para a saúde do espaço público mediático, mas vamos primeiro colocar bem as questões no tabuleiro, sob pena de nos perdermos em conversas de surdos. Jornalista

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