Regresso a Auschwitz
Bento XVI foi mais alemão do que Papa no campo de extermínio, falando assim a judeus, polacos e alemães
Antes de terminar a sua visita de três dias à Polónia, Bento XVI escolheu falar como alemão, em alemão. Fê-lo em Auschwitz-Birkenau. "Durante o resto da visita fora sempre o chefe da Igreja Católica; aos campos de extermínio deslocou-se como alemão e como católico", notou o repórter do diário israelita Ha"aretz. A escolha tem um significado profundo num momento especialmente delicado já que, na Polónia, voltam a esvoaçar os seculares fantasmas da xenofobia e do anti-semitismo.O Papa alemão, ao deslocar-se a Auschwitz, e ao escolher cuidadosamente cada uma das palavras que proferiu, os passou que deu, os lugares onde parou, estava sob o mais exigente dos escrutínios. Ao contrário de João Paulo II, que era polaco e crescera não longe daquele sinistro lugar, Bento XVI é alemão, com 16 anos obrigaram-no a alistar-se no exército, de onde desertaria antes do fim da guerra. Por isso tinha de falar aos polacos, um quinto dos quais morreu durante o conflito, a mais elevada proporção entre as nações que o conflito atravessou. Tinha de falar aos judeus, que viram 1,2 milhões dos seus gaseados e cremados naqueles campos. E tinha que falar em nome dos alemães e aos alemães. Tudo numa altura em que na Polónia ressurgem sentimentos xenófobos alimentados pela extrema-direita no poder, tudo um dia depois de o rabi de Varsóvia, Michael Schudrich, ter sido vítima de um ataque anti-semita. Cada um dos seus gestos foi pois cuidadosamente escrutinado, sendo contudo fundamental ler na íntegra o discurso que fez para entender o seu significado.
E que novidades encontramos nas suas palavras? Antes de mais o facto de, ao contrário do que fizera nas suas duas anteriores visitas João Paulo II, se ter referido abertamente à Shoah e ao facto de os crimes ali cometidos não terem paralelo na história. Mais: o ter escolhido, depois de se referir às inscrições em hebreu presentes no memorial de Birkenau, terminar o discurso lendo um salmo da Bíblia que é celebrado tanto por cristãos como por judeus.
Depois, ao referir-se aos alemães, fê-lo de forma diferente do habitual, como notou Piotr Kadlick, o líder da comunidade judia na Polónia que o acompanhou na visita, ao Ha"aretz: "Foi muito importante que tivesse falado abertamente sobre a responsabilidade de todos os alemães, que não o tivesse feito usando antes a palavra "nazis"." Esta leitura difere da efectuada por alguns editorialistas, designadamente em França - caso do Le Monde -, mas vai ao encontro da leitura da imprensa alemã, onde se escreveu que há muito ninguém nascido na Alemanha conseguira reunir tanta amizade no vizinho que fica a leste do Vístula.
Bento XVI falou da responsabilidade dos alemães ao assumir-se "filho do povo sobre o qual se ergueu um bando de criminosos graças a falsas promessas de futura grandeza e de recuperação da honra nacional, mas também através do terror e da intimidação, permitindo que o meu povo fosse usado e abusado como instrumento da sua sede de destruição e poder". Representarão estas palavras uma fuga à responsabilidade colectiva dos alemães? Os polacos ouvidos em Auschwitz pelo Ha"aretz avaliaram-nas exactamente ao contrário, e para tal, por certo, também contribuíram as palavras de Bento XVI contra a crença no poder ilimitado dos homens: "Ao tentarem destruir Israel, com a Shoah, esses [criminosos] desejavam em última análise destruir as raízes da fé cristã e substituí-la pela fé na sua própria invenção: a fé no poder dos homens, a fé no governo dos poderosos."
A assumir-se como alemão em Auschwitz-Birkenau Bento XVI foi mais longe do que João Paulo II e por certo alguns dos gestos serão no futuro recordados com aquele momento histórico em que Willy Brandt, chanceler alemão, se ajoelhou junto ao monumento às vítimas do gueto judeu de Varsóvia.