O Ventura é um tipo muito destruído, e eu também
Cannes já viu Juventude em Marcha, o filme português em competição no festival, que domingo anuncia os prémios. Houve aplausos, mas também quem abandonasse a sala. O realizador diz que "é preciso ver este filme num estado de tensão nervosa para o sentir". Pedro Costa lança ainda duras críticas a este "jogo corrupto de poderes e influências" que é o festival. Do nosso enviado Vasco Câmara em Cannes
Antes havia as Fontainhas (Ossos), Vanda Duarte (No Quarto de Vanda). Agora que ali só existem ruínas e os habitantes foram realojados num bairro social, Ventura, imigrante cabo-verdiano que chegou a Lisboa nos anos 70, paira com o olhar perdido em horizontes que já não tem (é impossível agarrar esse olhar). Está à procura de fantasmas. Dos fantasmas que lhe tiraram (a brancura imaculada do novo bairro não é viveiro para eles). A mulher abandonou-o, ele deslizou para qualquer coisa de misterioso, busca o que deixou em Cabo Verde e o que perdeu em Portugal.
Com a elegância, a melancolia e a teimosia existencial de alguns heróis burlescos, é o herói de Juventude em Marcha, filme de Pedro Costa que foi exibido na competição de Cannes. Depois desta conversa, ficamos a saber: Pedro Costa tem o olhar de Ventura.
Na projecção para a imprensa de Juventude em Marcha, a sala esvaziou-se. Quem ficou, aplaudiu, e os aplausos subiram de tom quando apareceu o seu nome no genérico final. Como é que se sente na competição de Cannes?
Eu não tenho distribuidora para o filme em Portugal. É mais uma questão económica, esta coisa dos festivais. Antes, um festival era um passo importante. Agora é o sítio onde podemos mostrar o filme ao máximo de compradores possíveis.
E os rituais, o desfile na passerelle vermelha...
Como pode ver, Juventude em Marcha é feito mais para as pessoas que participam no filme. Pode ser críptico para os franceses, porque há coisas que só nos dizem respeito a nós, portugueses. Coisas sobre a minha juventude, ou sobre a juventude daquele homem que encontrei [Ventura].
Em relação a esses rituais, sou indiferente. Tenho que fazer algumas coisas, outras não faço.
No Quarto da Vanda (2000) vinha de um filme anterior, Ossos (1997). Juventude em Marcha vem desses dois. Mas o encontro com Ventura alterou algo no processo?
Não alterou. Mas trouxe-o a ele, Ventura, e trouxe uma série de coisas que não estavam nos filmes que fiz nas Fontainhas. E que eu tinha nos outros filmes que não eram feitos nas Fontainhas...
Como Casa de Lava (1994)...
Sim, esse lado mais negro, aquelas coisas não ditas... As coisas sobre o passado, um finca-pé no passado, em tudo, na política, na arte, numa maneira de viver o passado.
Citando o que escreve no dossier de imprensa: "Ventura é um homem do passado, tal como eu. Não esperamos grandes coisas do presente."
Falo aí da maneira de fazer filmes. Mas também da vida dele, porque é um homem que já não espera grande coisa de nada. Ficou numa espécie de encantamento, em relação a uma coisa passada. Não reage a nenhuma novidade. A sua personalidade é constante, fiel, muito forte nas convicções. É pai, é um avô, é uma figura do passado.
Já o conhecia vagamente, de passagem lá pelos becos e pelas tabernas [das Fontaínhas]. Depois, quando comecei a pensar neste filme, a ideia era ter alguns pilares de lá, alguns dos construtores das primeiras barracas, dos primeiros chegados de Cabo Verde. Comecei a estar mais com o Ventura e ele começou a revelar-se generoso comigo.
Quando tomei a decisão de filmar com ele, foi quando começámos a falar do momento em que ele deslizou para o silêncio, para uma escuridão, para uma solidão. É uma pessoa lendária no bairro. Ninguém se aproxima dele.
Foi numa conversa que tivemos que percebi que em 1974/1975 eu devia ter estado nos mesmos sítios que ele. 74/75 foi importante para mim. Foi a altura em que comecei a ver filmes, foi a altura daquela nossa história [a Revolução], e ocorreu-me que em todo o lado em que estava, não tinha visto um negro nas manifestações. Mas ele estava, naquela altura, no Jardim da Estrela, eu vivia em S. Bento, e lembro-me, de facto, de pequenos ajuntamentos no jardim, de quatro ou cinco negros aterrorizados. Na altura não pensei dois segundos sobre isso. Mas via-os. E quando comecei a falar com o Ventura, lembrei-me das festas que eles faziam numas esquinas em S. Bento. Mas nas fotografias, nas imagens, não se encontra um negro num milhão de pessoas nas manifestações do 1.º de Maio. Os tipos que tinham chegado, a partir de 70, viviam no medo, era o pânico nas ruas. O Ventura disse-me que esteve a um passo de se ir embora.
Eram coisas que eu queria contar, e que acabaram por sair através dele. Quando comecei a filmar vieram os outros, veio a Vanda, que já me tinha pedido para entrar no filme. Eu queria muito filmar com eles outra vez, e desta vez todos me pediram para trazer as suas próprias histórias.
É isso que se altera, ou se apura, em relação aos filmes anteriores. Num equilíbrio entre ficção e documentário, este é um documentário sobre as ficções daquelas pessoas.
Diz melhor do que eu. Foi isso. A coisa estava semi-apurada para eles fazerem o que fazem, e para eu me sentir seguro com o que via e ouvia. Por exemplo a insistência da Vanda em deixar, com o marido, uma imagem de casal no filme - um filme para eles ainda é como aqueles retratos, que se faziam, de família, de casal. Mesmo que se separem, fica a fotografia.
A coisa está quase apurada para poder vir a ser outra coisa ainda, para eles passarem para a ficção. Eles, não eu. Mas desta vez foi assim: são cartas, são mensagens, há semi-olhares para o espectador...
O que é que o leva a continuar com estas pessoas?
Não me apetece mudar. É a vida deles que continua e a minha está misturada. Por outro lado, a maneira como trabalho é impossível de aplicar ao trabalho com actores, pelo menos conhecidos. Como é que posso ter um actor ou um director de fotografia durante dois anos?
Não consigo filmar de outra maneira. Chegar ao coração deste filme foi difícil. Há muitas mais versões de Juventude em Marcha. Com as variações dos vários takes, dava um filme completamente diferente.
Acha que cria nas pessoas que filma a expectativa de que regresse?
Há uma expectativa que eu não deixe de lá passar para comer a cachupa ao domingo, como os amigos.
E os filmes?
Não há esse tipo de obrigação.
A sua relação com Ventura criou ressentimento em Vanda, a "estrela" de No Quarto da Vanda?
Imenso. Não ressentimento, mas inveja, ciúme.
Não é que eu esteja mais próximo da Vanda, mas já há um passado mais longo. O Ventura comigo é aquilo que se vê no filme: é um homem que se reserva. Tem 49 anos, não é de uma geração muito diferente da minha.
Há uma identificação, até uma semelhança...
É os olhos, acho eu. É o que me dizem. É o também puxar muito ao negrume. É um tipo muito destruído e eu também. Muito tradicionalista, teimoso, e muito secreto. E inatingível. Mete medo, é difícil a relação com ele, foi um tipo que se fechou. Com a Vanda não. Os quartos da Vanda são mais festivos, apesar das grandes tragédias. Mesmo No Quarto da Vanda era um bocadinho uma festa.
Porque é que o título de Juventude em Marcha em francês é a tradução à letra e em inglês é, belíssimo, Colossal Youth? Alguma relação com o álbum dos Young Marble Giants?
Era preciso um título inglês, por razões de estreia na Ásia. O Quarto da Vanda no Japão foi traduzido à letra. Mas Juventude em Marcha é ambíguo. Dá a ideia de uma palavra de ordem. Há quem não goste. Lembrei-me do disco, de que eu gostava bastante. A juventude é um colosso...
Pode fazer-se relação com o minimalismo das canções dos Young Marble Giants, o lirismo...
A maior parte daqueles grupos [do pós-punk] ainda resistem por causa daquele não saber, daquela cegueira de base do punk - mesmo que esteja mal, a gente vai fazer assim. Aquela coisa de não terem instrumentos. Eu também não tenho.
A inclusão do filme em competição foi considerado um gesto radical dos programadores. A competição é um jogo. Está para jogá-lo?
Uma das coisas que disse aos programadores é que a palavra "competição" não é do meu vocabulário. Foram eles que escolheram o filme, por razões artísticas ou sentimentais.
O que é que significaria ganhar um prémio?
Não creio que aconteça. Seria agradável, mas não.
Não sei se as pessoas neste contexto têm os olhos abertos. Não estou a falar do júri, nem das pessoas que abandonam a sala. Estou a falar das pessoas em geral. É preciso ver este filme num estado de tensão nervosa para o sentir. Para perceber as suas nervuras. Foi a maneira como filmamos: uma disciplina para não deixar cair essa tensão. Daí que tivéssemos filmado quase seis dias por semana sem parar, durante dois anos. O filme não pode ser visto, tal como ele é, num festival como este. Terá de ser noutras condições.
Para além de uma coisa importante: este é um jogo corrupto - estou a ser demasiado violento - de poderes e influências. O filme custou 500, 600 mil euros. A festa da Sofia Coppola [no lançamento de Marie Antoinette] custou 900 mil euros.