Metamorfoses musicais no Centro Cultural de Belém
Fazer alternar a leitura de fragmentos das Metamorfoses, de Ovídio, com excertos de obras musicais barrocas neles inspirados é uma ideia tão simples quanto eficaz - uma espécie de ovo de Colombo, que fez do concerto da orquestra canadiana Tafelmusik na passada terça-feira, no Centro Cultural de Belém, uma experiência gratificante, diferente da habitual rotina da programação musical.Numa inteligente e bem articulada selecção da contrabaixista Alison Mackay, material literário das obras Tristia e Metamorfoses, de Ovídio, e do poema The Wild Swans at Coole de W. B. Yeats, encontrou um equivalente musical em passagens instrumentais extraídas das óperas Ácis e Galatea, de Lully, Castor e Pollux e Pigmalião, de Rameau, e Alcyone, de Marin Marais.
O Concerto para violino e violino de eco, RV. 552, de Vivaldi, recordou a Ninfa Eco desprezada por Narciso, e andamentos do famoso Concerto para oboé, de Alessandro Marcello, e do Concerto para Violino RV. 208, Grosso Mogul, de Vivaldi, evocaram simbolicamente o Concurso entre Pã e Apolo (ou seja, entre instrumentos de sopro e instrumentos de cordas).
O actor Manuel Wiborg assumiu a postura sóbria e eloquente de um contador de histórias, sem dramatizar os textos e sem ênfases de entoação desnecessárias num material tão rico de conteúdo.
A orquestra Tafelmusik (que tem atrás de si mais de meio século de uma sólida carreira internacional partilhada em concerto e em disco com solistas maiores do universo música antiga) mostrou segurança técnica e estilística, clareza de linhas e uma sonoridade brilhante que não defraudou as expectativas suscitadas pelo seu currículo. Contou também com solistas de alto nível: John Abberger no oboé, os violinistas que interpretaram de forma sedutora o Concerto para violino e violino de eco, de Vivaldi, e sobretudo Elisabeth Wallfisch, que se mostrou uma intérprete à altura do exigente virtuosismo de Il Grosso Mogul, mesmo se a sua abordagem não foi tão extravagante como a de alguns violinistas italianos.
Musicalmente, notou-se um certo crescendo de energia e vigor ao longo do concerto que culminou na famosa "Tempestade" da Alcyone de Marais (onde a máquina do vento foi habilmente substituída por um bombo) e na belíssima Chaconne subsequente.
No entanto, se colocarmos em paralelo a prestação da Tafelmusik com algumas das tendências interpretativas da música barroca nos últimos anos (em concreto, com a exuberância, os contrastes fortes
e a teatralidade no domínio do repertório italiano ou um trabalho que leva mais longe
o colorido sonoro, a arte da ornamentação ou uma acentuação mais incisiva dos ritmos de dança na música francesa), esta resulta ligeiramente pálida e bem comportada.
Os contrastes ao nível
da cor e da dinâmica são relativamente ténues
e impera uma certa contenção e sobriedade emocional, que apenas
foi quebrada nalgumas das peças finais e no encore com a mais festiva das "Danças dos Marinheiros", da ópera Alcyone, de Marais.
É uma abordagem
que parece remeter para um estádio anterior no âmbito dos mutifacetados caminhos mais recentes das interpretações historicamente informadas, mas que
não deixa de ser legítima, até porque foi servida
com grande profissionalismo.