Teresa Villaverde, cineasta em transe
Filmando o périplo de uma mulher pela Europa do tráfico e da degradação, a realizadora fez com Transe o seu filme mais transcendente. E a actriz Ana Moreira sobe aos céus das grandes presenças femininas em Cannes. Do nosso enviado, Vasco Câmara, em Cannes
É a história de Sonia, que abandona tudo em S. Petersburgo, porque o paraíso há muito foi desfeito e ela quer mudar de vida. Não quer morrer sem que ninguém saiba que ela existiu. Sonia não olha para trás. Quando começa a fazer o seu périplo europeu, Rússia, Alemanha, Itália e Portugal, vai olhar sempre em frente e em frente há-de ser aquilo que simplificamos com a palavra "inferno" - degradação, prostituição, tráfico humano... (mas é importante para definir Sonia: o olhar em frente; de frente; e a recusa em chorar).
É uma Europa em trânsito, é uma terra em transe, onde desapareceram fronteiras e guerras entre países - mas onde "acontecem as guerras entre as pessoas", como se diz no filme. Este é o território de Transe (Quinzena dos Realizadores), onde encontramos uma cineasta criativamente em estado de alerta, arriscando e olhando também em frente e de frente - como a personagem do seu filme.
Teresa Villaverde faz aqui uma prova de força assinalável, sobretudo para quem vinha de um momento de perda (Água e Sal, 2001). Mas Transe é, também, uma resolução - até uma superação - de dilemas colocados pela sua obra anterior, que já eram filmes povoados por deserdados, inadaptados, explorados, jovens emocionalmente violentados; assim eram Três Irmãos (1994) ou Os Mutantes (1998).
Pode dizer-se desta forma: o cinema de Villaverde fez-se sempre da intuição da existência do Mal, como um mau sonho ali ao lado, por isso fazia-se de balanços, derrapagens (um vaivém entre realismo e onirismo). Transe parte com a certeza de que o Mal existe, por isso é um filme que se aguenta como se fosse de um só gesto, faz-se de uma só atitude, do princípio ao fim: está em aliança (quase) total com a luta e o atordoamento da sua personagem ("Não adormeças", alguém diz a Sonia).
Puxado por uma interpretação de Ana Moreira que vai siderar qualquer um, Transe, filmado na Rússia, na Alemanha e em Portugal, é também (quase) exemplar na forma como incorpora as diferentes nacionalidades e personagens que encontra ao longo da via sacra de Sonia: é um filme de uma presença, e um filme de um olhar. Será o mais transcendente dos filmes de Villaverde.
Personagens
em estado de guerra
Bruno Dumont, cineasta francês, diz que, quando filma, a câmara também quer encontrar, mesmo quando enquadra uma paisagem, o espaço mental das personagens. Que estão sempre, também, em estado de guerra. Um filme será a experiência dessa afirmação selvagem de existência. Em Flandres (competição), Dumont filma mesmo a guerra: três rapazes do Norte de França, da Flandres, são alistados num conflito (não se explica qual, mas pode ser o do Golfo). O resultado não podia ser mais demonstrativo, e está longe do choque criativo que foi L"Humanité, o polémico filme de Dumont que Cannes premiou em 1999.
Não é diferente (isto é, a questão da retórica) o caso, também na competição, de Babel, de Alejandro González Iñarritu - outro filme, como o de Villaverde, em que o espaço global é uma nova condicionante da existência das personagens. Como se sabe desde Amores Perros e de 21 Gramas, as personagens dos filmes deste cineasta são meros peões de uma construção que se esmera (artificialmente) a tecer narrativas sobre o acaso, a coincidência, a ligar histórias como quem pretende bater um recorde em prova desportiva.
Desta vez, devido a um tiro de espingarda no deserto marroquino, é desencadeada uma série de eventos que vai ligar um casal de turistas americanos (Brad Pitt e Cate Blanchet), dois rapazes marroquinos, uma baby sitter que atravessou ilegalmente a fronteira do México com os Estados Unidos e uma adolescente japonesa em Tóquio. Os filmes de Iñarritu servem sempre a bandeja da redenção, por isso é natural que andem sempre nas proximidades dos palmarés dos festivais.