SOMBRAS DE JOHN CASSAVETES, POR GENA ROWLANDS

Gena Rowlands foi a convidada desta edição da iniciativa "Lição de Cinema". Trouxe a Cannes
a parte da sua história íntima que se pode confundir com a história pessoal dos espectadores: a memória de John Cassavetes,
de quem foi companheira e actriz.

A voz era rachada, agora está quase partida. E podemos hoje perguntar, ao olhar para a figura que sobe ao palco, como é que um crítico, por alturas de 1979, por alturas de Gloria, de John Cassavetes, tenha visto na maneira como ela andava nesse filme, com um miúdo ao colo e uma arma apontada à máfia, uma autoridade só comparável à de John Wayne e de Robert Mitchum. À autoridade de uma história pessoal que imediatamente se impunha com a presença. Quanto a Wayne e Mitchum, a comparação hoje pode ser desigual. Mas o peso de uma história, Gena Rowlands, 75 anos, tem-no.Cannes convidou-a, como fez o ano passado a Catherine Deneuve, para uma das suas "lições de cinema" ("embora eu não dê lições a ninguém", disse Gena), iniciativa que permite um encontro mais próximo entre actores, realizadores, compositores de músicas de filmes e a imprensa.
Ela trouxe a sua história, que se pode confundir com a história pessoal de espectadores. Por causa de John Cassavetes, realizador de Shadows, de quem foi companheira e intérprete de sete filmes, onde fez (fizeram os dois) espantosos, revolucionários retratos de mulheres. Que se chamavam Mable ou Myrtle ou Minnie... Há alguma coisa de especial com os "M" que devamos saber?
"Várias pessoas já me fizeram notar isso. Em tempos, eu respondia que eram nomes da minha avó ou da minha tia. Mas não era nada disso, não sei porque é que John me deu esses nomes começados por M." Até em Neon Bible, de Terence Davies (1995), há um "M", de Mae. "Deve ser uma gigantesca conspiração", ri-se. No ecrã tinha acabado de passar a cena de abertura de Noite de Estreia (Cassavetes, 1978), em que a actriz que Gena interpreta joga ao espelho um olhar de autodesmistificação.

Do campo para a cidadeA história dela começou numa comunidade rural do Wisconsin, em 1930, filha de um político e de uma mãe artista. Logo aos 14 anos quis ser actriz e a verdade é que passou os anos da guerra (por isso mesmo, alheia à guerra) no palco, em companhias de reportório, em Washington.
Acabaria por ir parar a Nova Iorque sozinha, um feito "para gente do Midwest" como era a sua família. Nunca mais vai esquecer os anos 50 em Nova Iorque: "Os anos excitantes do teatro e da televisão ao vivo." Só "queria estar sozinha, não conhecer nenhum rapaz". Foi o master plan que concebeu para vingar numa carreira teatral.
Tudo isso iria por água abaixo. Por causa de um vestido sem alças: eram as provas de admissão a uma escola de teatro, John Cassavetes, actor, estava na plateia, viu-a com esse vestido sem alças. "Na verdade, eu já o tinha visto antes. E disse para mim: "oh não, nem pensar, não vais aproximar-te daquele rapaz"." O plano falhou, e a possibilidade da história dela se cruzar com a nossa começou aí.
Ainda houve uns filmes para os estúdios, mas num deles Gena já dizia a Burt Lancaster: "Se não precisássemos de homens para fazer bebés, acredita que eu os faria sozinha."
"Isto, nos anos 50, quando os filmes se preocupavam sobretudo com os homens e com os problemas dos homens, que tinham regressado da guerra - a mulher era o apoio que os devia receber - era bastante polémico."
Depois foi John a interessar-se pelo cinema. "No início, eu, John, Peter [Falk], Ben [Gazarra, actores da "família" Cassavetes] não estávamos nada interessados no cinema. Só nos interessava o teatro. Mas os tempos começaram a mudar e John começou a descobrir o cinema."
Faces (1968), não o primeiro filme em que John a dirigiu, mas em outros sentidos a primeira explosão do cinema de Cassavetes, foi filmado, em aproximadíssimos grandes planos ou em planos que deixavam os actores ao longe (sem meias medidas), na casa deles, na casa da mãe dela. Com o dinheiro que cada um tinha arranjado em exteriores trabalhos de interpretação.

O cinema de Cassavetes"Nos seus filmes, John não deixava que cada um de nós, actores, falássemos com os outros sobre as nossas personagens. Ficava furioso. Nem autorizava que lhe perguntássemos alguma coisa sobre a personagem. Dizia: "Tens a tua personagem. Ela é tua. Eu escrevi o argumento, dei-to e tu aceitaste. Por isso deves saber mais sobre a personagem do que qualquer outra pessoa no mundo. Não sabes o que vai acontecer a seguir? É assim mesmo a vida. Deixa isso aparecer no ecrã". Acho que se deve a isso a tensão maravilhosa que aparece nos filmes de John", explicou Gena.
"Eram filmes muito activos, sim, John não me via propriamente a..." e faz o gesto de coser um botão. "Eram filmes muito físicos, onde tínhamos uma grande liberdade de movimentos, não haviam aquelas marcas no chão como nos filmes de Hollywood. Como é possível interpretar e ter de reparar ao mesmo tempo nas marcas a pisar? Nos filmes de John usávamos pequenos microfones escondidos na roupa, que não davam grande som mas davam-nos imensa liberdade. Íamos para onde queríamos, a câmara é que tinha de nos seguir. Na verdade, o homem do foco era o herói dos nossos filmes." Onde ela e eles fumavam e bebiam como se não houvesse amanhã.
"A minha relação com John era muito volátil. Lembro-me uma vez de uma luta entre nós num hotel. Algum de vocês sabe o que é isto das discussões entre casais em hotéis? Pois estávamos num hotel em Nova Iorque a promover um filme, tínhamos acabado de discutir e bate à porta um crítico - o famoso crítico Richard Schiekel. Apresenta-se e nesse momento explodi. "Tire-me este sacana do meu quarto" - referia-me a John - "ou saio eu". "Desculpe", disse Richard, "talvez noutro momento então..." e fechou a porta. John desatou a rir-se à gargalhada. A discussão acabou. O crítico diria mais tarde que o que mais o impressionou não foi a discussão, mas o facto de a seguir eu e John termos descido do quarto juntos para tomar uma bebida."

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