O Código Da Vinci mudou o mundo?
Misturando factos reais com outros inventados e teses de ficção, Dan Brown confundiu muitos cristãos. De repente, toda a gente fala de textos gnósticos,
do Priorado de Sião, de Maria Madalena. Quatro especialistas analisam o impacte do livro sobre o cristianismo. Por Alexandra Prado Coelho
Há católicos mobilizados em protesto contra O Código Da Vinci, há dezenas de outros livros publicados sobre o tema da suposta descendência de Jesus e Maria Madalena, há textos que a Igreja tinha posto de lado e que agora vendem milhões, há visitas guiadas a locais a que ninguém ligava, há gente a decifrar códigos por todo o lado. Como é que um livro que todos reconhecem não ser uma extraordinária obra literária consegue este efeito? Virá o seu fascínio do facto de pôr em causa as versões da história dadas pela Igreja Católica, acusando-a de ter mentido durante dois mil anos? O que Dan Brown faz é ir buscar textos que a Igreja considerara heréticos e excluíra do seu cânone - os evangelhos gnósticos, que contam versões alternativas da vida de Jesus - e divulgá-los ao grande público. "A verdade é que esses textos existiam, e a Igreja nunca fez grande catequese aos seus fiéis sobre eles", diz Laura Ferreira dos Santos, professora da Universidade do Minho e autora do livro Diário de Uma Mulher Católica a Caminho da Descrença. "Há muitas coisas que nunca foram bem explicadas às pessoas", sublinha.
Isto abre caminho a que quem lê o livro de Dan Brown aceite como verdadeiras coisas que o são, como os evangelhos gnósticos, e ao mesmo tempo coisas que não o são, como o Priorado de Sião. Tudo aparece no mesmo plano. E a ignorância leva a um raciocínio simples: se existiam outras versões sobre a vida de Jesus e a Igreja nunca as divulgou, então é possível que todas as outras teses que Dan Brown apresenta sejam também verdadeiras.
"O livro venceu uma fronteira entre o mundo dos estudiosos, que conheciam os textos gnósticos, e o do grande público", reconhece o padre Peter Stilwell, director da Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Lisboa. "A maior parte das pessoas desconheciam que pudesse haver teses alternativas. Mas depois, [Dan Brown] dá um salto para a ficção."
"A inteligência de Dan Brown foi tornar acessível coisas que durante séculos foram discutidas apenas por uma elite de especialistas", diz também a teóloga Teresa Toldy. Mas esta professora da Universidade Fernando Pessoa, no Porto, não pensa que a Igreja tenha tido intenção de esconder os textos: "Houve um atirar para a margem, e depois acabaram por cair no esquecimento."
Peter Stilwell duvida, no entanto, que o facto de muita desta informação se ter tornado pública seja suficiente para abalar as convicções dos católicos. "As pessoas fazem os seus juízos de confiança ou desconfiança com base nas ligações que têm, no padre que as acompanha, e não com base no último livro que leram." Por outro lado, "quem esteja nas franjas, tenha já uma desconfiança em relação à Igreja, ou não goste dos padres, encontra aqui uma justificação para dizer "são uns aldrabões"."
"Toda a cultura ocidental está ligada ao cristianismo. Se há um autor que vem dizer que existe uma verdade oculta, é natural que isso mexa com as pessoas", concorda o padre Joaquim Carreira das Neves. "Sobretudo porque as pessoas perderam a esperança na ciência e no dogma da imortalidade através da ciência, e andam à procura de alguma coisa a que se agarrar, andam em busca de um neognosticismo."
A armadilha dos gnósticosO problema é que se pode cair facilmente no fascínio pelos gnósticos, e olhar para esta seita, muito forte nos primeiros anos do cristianismo, como uma espécie de heróis da resistência à ortodoxia católica, feministas e defensores de teses liberais. E não é exactamente assim, avisa Teresa Toldy.
"As teses gnósticas pressupõem a existência de níveis e graus no acesso a Deus. É um modelo elitista, que pressupõe que é através do conhecimento intelectual que chegamos a Deus", explica a teóloga. Além disso, os gnósticos defendiam que "só os que são capazes de se afastar da existência corpórea é que são capazes de atingir Deus - ou seja, só os místicos e os filósofos é que o conseguiriam".
E se há pontos das teses gnósticas que são atraentes hoje em dia, como a ideia de que a "centelha divina" está dentro de cada um de nós, há outros (menos divulgados) que entram em choque com o nosso mundo, como o princípio de que "a existência corpórea é uma degradação", e a rejeição de tudo o que tem a ver com o corpo, nomeadamente a sexualidade. São, acrescenta Peter Stilwell, documentos que têm que ser contextualizados, e que "surgem já num ambiente de influência helénica, muito longe do quadro bíblico e trazendo uma cultura estranha àquela em que viveram os apóstolos".
O padre Carreira das Neves, que conhece os evangelhos gnósticos há 40 anos, confessa: "Se não tivesse estudado o que estudei, se calhar também acreditaria" no que escreve Dan Brown. "A heterodoxia é sempre fascinante para uns e vista como uma ameaça por quem defende a versão oficial", prossegue Teresa Toldy. O que pode ser perturbador em todo o fenómeno de O Código Da Vinci é a descoberta de que "desde o início houve interpretações diferentes, portanto o pluralismo não é um desvio", conclui a professora. Carreira das Neves faz a mesma leitura: "É preciso que a Igreja perceba que não é monolítica, nunca foi e nunca será."