"Em cada poema que Mário Viegas diz está a marca de um artista de eleição"
O PÚBLICO assinala os dez anos da morte de Mário Viegas, actor e "dizedor de poesia", com uma colecção inédita de 12 livros, com oferta de CD. Os volumes de Mário Viegas - Discografia Completa incluem ainda a transcrição dos poemas recitados, histórias das gravações dos discos, críticas da imprensa da época, imagens do espólio do artista cedidas pelo Museu Nacional do Teatro e uma biografia que começa por evocar a sua infância e adolescência em Santarém e, mais tarde, aborda a sua carreira profissional. Amanhã, o sétimo volume Humores II, por apenas mais 8 euros, com o PÚBLICO
PÚBLICO - Como é que conheceu Mário Viegas? RUI GODINHO - Conheci-o no liceu de Santarém em finais dos anos 50, princípio dos anos 60, onde estudei e ele também. Além disso, morei alguns anos na Rua António Basto, n.º 10 e a família Viegas morava no n.º 20 ou 24. Éramos vizinhos e cruzávamo-nos praticamente todos os dias.
É manifesto que muito cedo se revelou que ele tinha especial talento para ser actor, para ser declamador, para organizar pequenas sessões de teatro, como depois se veio a confirmar no extraordinário actor e declamador que conhecemos até há dez anos.
Recorda alguma ocasião especial desses tempos?
Lembro-me que nos recitais de poesia que ele organizava ou onde participava levou uma vez um poema que até hoje acho que a forma como o diz é das coisas mais extraordinárias, o Poema para Galileo, de António Gedeão. Nunca mais me foi possível esquecer a forma como aquele poema é dito. O poema é uma homenagem a um grande homem, cientista, pensador, Galileu, e também uma homenagem à cidade de Florença e ao Renascimento. A forma brilhantíssima como o poema é construído pelo professor Rómulo de Carvalho/António Gedeão e como é extraordinariamente dita pelo Mário Viegas é seguramente uma das marcas que guardo há mais longa distância.
Depois do liceu, voltaram a encontrar-se em Lisboa...
Voltei a cruzar-me com ele, mas de outra maneira, não como vizinhos, mas eu a assistir a peças onde Mário Viegas era intérprete. Depois, quando assumi responsabilidades públicas na Câmara Municipal de Lisboa, tivemos contactos muito intensos relativamente à constituição do Teatro-Estúdio Mário Viegas, no São Luiz, onde se instalou com o seu grupo.
Os nossos contactos eram agora mais efémeros, eu como espectador, ele como grande artista. Há uma peça verdadeiramente extraordinária dele que é D. João VI, apresentada por A Barraca ainda nas velhas instalações da Rua Alexandre Herculano, junto ao Rato. É um momento de teatro inesquecível. Como é inesquecível também o seu papel no Kilas, o Mau da Fita, que revela a sua versatilidade. Mário Viegas era capaz de ser profundamente trágico e também um actor que desempenhava papéis humorísticos com um nível excepcional. Esse humor, crítico e muito mordaz, também se revela nos poemas de Mário-Henrique Leiria ditos por Mário Viegas. São absolutamente assombrosos. O Manifesto Anti-Dantas, de Almada, é outro marco.
Mário Viegas manifestava também uma grande preocupação com a divulgação da língua e cultura portuguesas.
Sim, era um cultor da língua portuguesa. Basta passar em revista os poetas que divulgou no programa Palavras Ditas ou através dos poemas que gravou. O programa Palavras Ditas era um momento altíssimo na televisão.
Do ponto de vista da declamação, de Mário Viegas diseur, declamador de poemas, é muito difícil estabelecer comparações com outros grandes artistas que divulgaram a poesia portuguesa através de programas de televisão ou rádio. Quando falamos de Mário Viegas como declamador, lembramo-nos de João Villaret. Fazemos logo uma comparação da capacidade de comunicação, da forma como expressa e cultiva a língua portuguesa e do nível declamatório.
Era bom que as pessoas mais novas, que não tiveram oportunidade de ser suas contemporâneas ou com ele conviver, o ouvissem com tempo, cuidado e atenção porque em cada palavra, em cada forma de estar, em cada sílaba, em cada poema que Mário Viegas diz está a marca, o traço de um artista de eleição.
É essa a herança que Mário Viegas deixa às novas gerações?
O grande exemplo que nós podemos dar relativamente a Mário Viegas é continuar a ouvi-lo e divulgá-lo e, através dele, a língua portuguesa, os poemas e os poetas portugueses, o teatro português e o cinema português. Porque foi ecléctico a este nível e, ao mesmo tempo, um homem civicamente empenhado.
Soneto Super Desenvolvido,
de Ruy Belo
É tão suave ter bons sentimentosconsola tanto a alma de quem os tem
que as boas acções são inesquecíveis momentos
e é um prazer fazer bem
Por isso se no verão se chega a uma esplanadasabe melhor dar esmola do que beber a laranjada
Consola mais viver assim no meio de muitos pobres
que conviver com gente a quem não falta nada
E ao fim de tantos anos a dar do que é seu
independentemente da maneira como se alcançou
ainda por cima se tem lugar garantido no céu
gozo acrescido ao muito que se gozou
Teria este (se não tivesse outro sentido)ser natural de um país subdesenvolvido
Volume 7 Humores II
Disco original gravado em 1980.1. Ode ao Tejo e à Memória de Álvaro de Campos - Adolfo Cascais Monteiro
2. Soneto Super Desenvolvido - Ruy Belo
3. Os Pobrezinhos - Armindo Mendes Carvalho
4. Carreirismo - Mário Henrique Leiria
5. Lamento de Um Pai de Família - Jorge de Sena
6. A Jorge de Sena no Chão da Califórnia - Eugénio de Andrade
7. O Valor do Vento - Ruy Belo
8. Na Praia - Ruy Belo
9. Luís, o Poeta Salva a Nado o Poema - José de Almada Negreiros
10. Morte ao Meio-Dia - Ruy Belo
11. À Memória de Ruy Belo* - Eugénio de Andrade
12. Vem Serenidade - Raul de Carvalho
13. Não, Não Assino, Não Subscrevo... - Jorge de Sena
*O título deste poema, na edição original,
foi Na Morte de Ruy Belo