JORGE DE OLIVEIRA O PINTOR REDESCOBERTO... AOS 82 ANOS
Este ano Jorge de Oliveira passou de artista quase esquecido à consagração que representa ter cinco quadros
na colecção do Museu do Chiado. Em 2007 será a vez de uma individual. Por Isabel Salema
Os artistas portugueses não têm estatuto de estrelas pop, mas há uma série de nomes que aceitamos como consagrados. Na exposição do Museu do Chiado, em Lisboa, dedicada aos anos 40 e 50 na colecção do museu nacional de arte contemporânea, lá estão os nomes que reconhecemos facilmente, de Almada Negreiros a Júlio Pomar, até que tropeçamos num quadro de Jorge de Oliveira na sala do surrealismo e em mais quatro na sala da arte abstracta não-figurativa.Não passam despercebidas por causa do tamanho, pouco comum em Portugal, mas também porque "são o exponente de um projecto de pintura muito sólido e consistente", diz María Jesús Ávila, conservadora do museu. Diante dos quadros, surge inevitavelmente a pergunta: porque é que Jorge de Oliveira se tornou invisível nas últimas décadas?
Desde 2001, quando fizeram a exposição Surrealismo em Portugal, que o museu andava atrás do pintor. "Do que conheço, e ainda estamos a desarrumar gavetas, Jorge de Oliveira tem um lugar fundamental na história de arte portuguesa com claras referências internacionais, em sintonia com elas."
Este ano Jorge de Oliveira passou a estar representado numa colecção museológica com importância a nível nacional, depois do depósito no Chiado das cinco obras da exposição. "É a primeira vez que integro uma colecção assim tão oficial", diz Jorge de Oliveira, acrescentando que actualmente não quer vender nada, "porque vender uma pintura é perdê-la".
No seu atelier em Caxias, Jorge de Oliveira, 82 anos, desencosta da parede uma pilha de quadros do período dos que estão no Chiado, para explicar como pintava na altura em que descobriu o surrealismo e o Manifesto de André Breton, o fundador do movimento: "O método do automatismo psíquico era muito simples e directo. Foi uma liberdade total, segui-o à letra. Começava pelo canto superior da tela, não havia estudo prévio, nem um esboço, nem uma ideia. É tudo rigorosamente verdade."
São obras do final da década de 40, resultado da crise que o levou a abandonar o neo-realismo. Como um operário, Jorge de Oliveira chegou a ir todos os dias para a fábrica de cimento Maceira-Liz, perto de Leiria, porque queria fazer grandes painéis como os muralistas mexicanos: "Aquilo era a pintura socialista. Tenho muitos estudos, porque ia para a fábrica de manhã e saía de lá à tarde. Hoje acho graça a estas ingenuidades. Mas naquela época tive uma decepção e isso levou-me ao meu 25 de Abril: a leitura do Manifesto, do Breton, e de Arte e Sociedade, do Herbert Read. Foi uma revolução. A arte tinha que ser livre, não podia ser dirigida."
Jorge de Oliveira nasceu em Leiria em 1924, "filho de um republicano" que tinha uma loja de materiais de construção. Ficou órfão de mãe aos três anos e desde aí foi "uma espécie de cigano", porque foi viver com um tio, oficial da GNR, colocado em vários pontos do país. Voltou a Leiria aos 11 anos, depois do pai casar novamente, onde fez o liceu. "Desde miudinho que pinto. Na primária, que fiz em Lisboa, tornei-me especialista em desenhar na lousa filmes de cowboys, do Capitão Morgan e do Texas Jack. Já em Leiria, tive um grande mestre, o agualerista João Jorge Malquieira, de quem recebia lições privadas. O gesto rápido vem deste treino com a aguarela."
O pintor entrou primeiro na Escola de Belas-Artes de Lisboa e pediu depois transferência para o Porto. "Entrei no mesmo ano do Pomar, do Azevedo e do Vespeira. Depois fomos para o Porto. Eu e o Pomar vivíamos na mesma casa. O nosso socialismo era tão grande que pintávamos o mesmo quadro. O tema era a repressão, uma carga da GNR sobre a população." Mas não funcionava, porque estavam sempre a desmanchar a obra um do outro.
Por causa das actividades da Associação Académica, acabou por ser suspenso três meses e perdeu o ano. "Estávamos a reivindicar demasiadas coisas. Tive um problema de consciência, porque o meu pai fazia um esforço financeiro muito grande para eu estudar, e abandonei a escola."
Voltou para Leiria e conheceu Teresa de Arraiga, professora na Marinha Grande. Mudaram para Lisboa e casaram. Jorge passou por um atelier de arquitectura, pela Junta Central das Casas dos Pescadores e ficou 25 anos a fazer o grafismo da publicidade da Guérin, um importador de automóveis - "o lema cá de casa é não precisar da pintura para viver". Foi para Caxias, para o Alto do Lagoal, onde divide casa e atelier pelos dois andares da moradia que construiu há 50 anos no meio do verde: "Vi chegar esta gente toda. São 32 quilómetros em linha recta daqui ao Cabo Espichel."
Jorge de Oliveira "desaparece dos sítios centrais a partir do anos 50", diz o crítico de arte José Luís Porfírio, que está a fazer o primeiro estudo monográfico sobre o pintor. Foi, aliás, por intermédio de Porfírio, diz a conservadora, que o museu chegou ao artista.
Apesar da "curta fortuna crítica", Porfírio lembra que Oliveira participou em exposições consideradas históricas, como o I Salão de Arte Abstracta (Galeria de Março) ou as primeiras exposições de artes plásticas da Gulbenkian. E lembra que o crítico e historiador de arte José-Augusto França, "o grande defensor da arte abstracta", chegou a escrever que a primeira exposição individual de Jorge Oliveira, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, em 1950, marcava uma das dez principais datas da arte abstracta.
"Foi uma enorme surpresa rever esta obra em vias de esquecimento. Jorge Oliveira participa plenamente numa primeira geração que dá a arte moderna a Portugal. Tem uma qualidade de primeira linha, é um excelente pintor", afirma Porfírio.
O Chiado tem agora o projecto de fazer uma exposição inteiramente dedicada a Jorge de Oliveira no próximo ano. "Além de ser dos primeiros a trabalhar a abstracção, é importante a força que a obra tem. Desenvolveu um trabalho de não-figuração a partir do surrealismo abstracto mais automático", diz María Jesús Ávila. A conservadora liga a sua obra aos nomes internacionais de Roberto Matta, Gordon Onslow Ford e Boris Margo, artistas sediados no pós-guerra nos EUA, que praticam uma não-figuração centrada nas questões da espacialidade, criando atmosferas a que chamam "paisagens psicológicas". "É incompreensível porque é que não foi reavaliado em contexto, como é feito nesta exposição comissariada por Pedro Lapa."
Num artigo do Diário Popular, publicado a 25 de Janeiro de 1950, o crítico literário e escritor João Gaspar Simões pergunta ao artista se tem a certeza de que os seus quadros são compreendidos. Jorge de Oliveira responde:
- Tudo depende da atitude de quem observa os meus quadros. Sabe bem que é o indefinido que eu procuro exprimir, isto é, aqueles sentimentos que em nós próprios não têm forma: vêm, directamente, do subconsciente; quem olhar para os meus trabalhos, abandonando-se à melodia plástica que eu quis fixar neles, encontrará, por certo, o que eu quis lá pôr, pois, exprimindo os meus sentimentos indefinidos, exprimo, fatalmente, os sentimentos indefinidos de todos os homens.