Torne-se perito

Confidências do cientista Abel Salazar foram publicadas em livro pela primeira vez

A obra, que acaba de ser editada, é um documento autobiográfico, que revela a alegria e os dissabores de um homem das ciências

Abel Salazar, cientista, pintor e filósofo no Porto, fez uma série de confidências a um amigo cientista de Lisboa, Augusto Celestino da Costa. Expressas ao longo de 96 cartas, entre 1916 e 1946, tais confidências revelam um Abel Salazar ora entusiasmado com a investigação, ora irritado com as dificuldades burocráticas e intrigas do meio universitário, ora até fragilizado pela depressão que o afectou cinco anos. Mas só agora estas cartas, na posse do filho de Celestino da Costa, foram divulgadas. Estão reunidas no livro Abel Salazar: 96 Cartas a Celestino da Costa, 1916-1945 (Gradiva), da autoria de António Coimbra, professor jubilado de Histologia e Embriologia da Faculdade de Medicina do Porto, e que foi lançado quinta-feira, no Porto. "Era um homem grande demais para o seu tempo", repetiu então Maria de Sousa, investigadora de imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar, no Porto, sobre a personalidade plurifacetada de Abel Salazar.
É o primeiro livro da colecção Porto, Cidade de Ciência, um projecto da Fundação para o Desenvolvimento Social do Porto e da Gradiva, que editará mais obras. "É um projecto exemplar, capaz de promover a ciência e de fazer a liberdade florescer", disse Guilherme Valente, o editor da Gradiva.
António Coimbra contou como surgiu a ideia do livro. "Podia ter sido uma biografia, mas a professora Maria de Sousa deu a ideia das cartas." Foi o mote para o início de um trabalho "difícil", mas "de prazer", confessou o autor.
Jaime Celestino da Costa, filho do confidente de Abel Salazar, deu autorização para trabalhar as cartas. Foram transcritas na íntegra, mas com a ortografia actualizada. No livro só há três cartas de Celestino da Costa para Abel Salazar. Só oito cartas estavam datadas, pelo que António Coimbra teve de analisar o conteúdo e os acontecimentos históricos e, assim, determinar os anos em que foram redigidas.
Quem ler nas entrelinhas percebe que está ali uma espécie autobiografia. "As cartas foram uma revelação. Não falam de direitos humanos nem de política", disse o autor. "Abel Salazar teve uma actividade intelectual titânica, sobre-humana, difícil de imaginar-se reunida num único homem. Não admira que pudesse ter originado a profunda depressão nervosa que o inutilizou durante cinco anos", diz o autor na introdução.
São 276 páginas de confissões de um homem dedicado à ciência, cujas duas contribuições científicas que fez tornaram-no mundialmente conhecido. Investigador dedicado à microscopia, Abel Salazar desenvolveu o método tanoférrico, que, como explicou Maria de Sousa, consiste em usar químicos que permitiram ver melhor o que está dentro das células. Esse novo processo de coloração microscópica, publicado em 1920, ainda hoje é citado nos manuais técnicos pelas suas indicações em patologia, sublinha no livro António Coimbra.
Além disto, Abel Salazar descobriu uma estrutura das células, o Para-Golgi. "Foi um contributo de qualidade para a histologia do seu tempo", resumiu Maria de Sousa. Publicada em 1932, esta descoberta foi um avanço que ninguém pôde avaliar cabalmente na época, escreve, por sua vez, o autor, acrescentando que só em 1954 foi comprovada a existência deste organelo celular no microscópio electrónico e, nos anos 60, o seu papel nas secreções da célula.
Com uma leitura atenta das cartas, referia Maria de Sousa, retiram-se os desabafos de um homem que encontrava-se "extraordinariamente isolado". "O livro diz-nos que não há cientistas sozinhos. Precisamos de interlocutores."
E o interlocutor de Abel Salazar era cirurgião e professor de Histologia e Imunologia, um homem com estilo sóbrio e cordial, "que o ajudou a manter a sanidade mental, antes e depois da doença".
Abel Salazar queixava-se amiúde da falta de condições na Faculdade de Medicina do Porto, por exemplo.
"O livro não interessa só a médicos, mas a todo o país cultural", resumiu António Coimbra.

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