A arte da mutilação

Oitenta anos (e alguns outros trânsitos, mas não tantos assim) depois, Matthew Barney assume-se como figura de proa na "apropriação" do cinema (ou melhor, do objecto-filme) pelas artes visuais. Em sentido inverso ao de, por exemplo, Douglas Gordon (que pegou no "Psico" de Hitchcock e o transformou em objecto de exposição, na galeria ou no museu), Barney transporta as preocupações formais e temáticas do seu trabalho como videoasta e escultor para dentro de uma estrutura fílmica (ou "de filme") relativamente clássica. "Drawing Restraint 9" (que responde a um trabalho em série antigo de Barney, daí que leve o número 9) é muito mais um "filme" do que era a série "Cremaster", objecto que de alguma maneira pulverizava essa noção.

Sai-se bem? Vai-se ver "Drawing Restraint 9" a uma sala de cinema e tem-se a sensação de ter visto qualquer coisa de especial e intrinsecamente relevante? Difícil dizer que sim. Barney parece alguém bastante insensível ao cinema (questão de "planos" e não de "imagens", como Serge Daney lembrava num texto antigo), e de "Drawing Restraint 9" desprende-se uma sensação de aleatoriedade (sobretudo na montagem, nos tempos de "corte") que cedo o denuncia. Dois estrangeiros (Barney e a mulher, Bjork) são recolhidos a bordo de um baleeiro japonês - durante a viagem, filmada como uma sucessão de rituais de vária ordem, ocorre uma "história de amor", que culmina num misto de dança de acasalamento e cerimonial de mutilação (até que o homem e a mulher sejam "baleias", ou pelo menos que o espectador os veja como tal).

A "intervenção sobre o corpo" está, de resto, na raiz da série "Drawing Restraint": Matthew Barney ("estava interessado na hipertrofia") impunha-se condicionamentos físicos e trabalhava nessas condições. "Drawing Restraint 9", na sua sucessão ritualística a que não falta um lado "documental", vive do confronto entre os restos do corpo de uma baleia (transformada em pedaços viscosos e gelatinosos) e a "humanidade" do par (a tripulação do barco praticamente não conta, são filmados como pequenos robots, não há "indivíduos"). "Politics of the body". Isto vai dar onde? A Cronenberg, claro. "Dead Ringers", por exemplo - até no cerimonial. Ou, arte da mutilação por arte da mutilação, às tripas de Udo Kier projectadas num écrã de cinema em "Cigarette Burns" de John Carpenter. Vê-se "Drawing Restraint 9" com uma impressão de enorme redundância - isto é tudo menos terreno virgem. E Cronenberg ou Carpenter são, simplesmente, muito melhores cineastas do que Matthew Barney. Ponto final.

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