É precisamente esse aparente alheamento, essa distância, essa filmagem desapaixonada que torna "O Tempo que Resta" num filme tão emocionalmente devastador: Romain guarda para si a sua morte iminente, e Ozon aponta impiedosamente aos momentos em que, imperceptivelmente para as outras personagens, a sua fachada cede e deixa mostrar o turbilhão emocional em que ele se encontra. E, no entanto, há uma enorme compreensão, talvez até compaixão, nessa atenção com que Ozon filma o emaciamento de Romain, a mesma que sentimos na avó que é a única pessoa da família a quem confessa a morte iminente. Romain diz-lhe a ela, com uma lucidez aparentemente cruel mas certeira, porque também ela vai morrer em breve; mas também porque é a única pessoa da família suficientemente distante, suficientemente atenta, para compreender que ele quer morrer sozinho, em paz consigo mesmo, sem ter de lidar com os olhares de piedade daqueles que sabem, com a culpa e o remorso daqueles que o amam.
Não há piedade no olhar da avó (uma bem-vinda Jeanne Moreau), como não o há na câmara de Ozon: apenas o registo de uma escolha pessoal que se compreende, que se respeita, que se percebe. O que é notável em "O Tempo que Resta" é o modo como Ozon ejecta do filme toda e qualquer informação supérflua. Nunca saberemos que tipo de cancro Romain tem, nunca o conhecemos saudável, nunca o ouviremos falar dos seus projectos e das suas ambições, nunca saberemos de onde vem o seu afastamento da irmã. E, ao concentrar-se apenas no "tempo que resta" e no modo como Romain o vive, em plena consciência e posse das suas faculdades, este filme sobre a morte torna-se num filme sobre a vida, focado no "agora", como um retrato "a quente" de uma existência que toma subitamente consciência da sua própria fragilidade e se rende à necessidade de usufruir do momento, de reencontrar uma certa inocência, uma certa paz interior (simbolizada pela criança que foi, imagem que Romain vai reencontrando em pontos fulcrais do filme). "O Tempo que Resta" é, então, o tempo do percurso que Romain, numa interpretação absolutamente magistral de Melvil Poupaud, vive em direcção a essa paz, os encontros que ele faz, as fotografias que vai registando como memórias (talvez não para ele mas certamente para outros). Como uma luz que brilha mais forte logo antes de se apagar - e talvez a metáfora seja um tudo nada demasiado carregada no plano final, sem contudo desequilibrar a serenidade do todo nem a comovente simplicidade do último acto que deixa até o espectador mais empedernido com a garganta embargada.
É uma peça de câmara filmada com uma luminosidade transparente (magnífica fotografia de Jeanne Lapoirie, jogando habilmente com o Cinemascope sabiamente gerido por Ozon), cuja contenção quase jansenista na sua recusa de explorar o dramatismo inerente à premissa apenas a torna mais emocionante e perturbadora. Filmes deste calibre não aparecem aí ao Deus dará e, no caos actual da exibição portuguesa, é demasiado fácil que se percam por entre estreias desastradas ou insuficientemente divulgadas. Por isso, sem medo de hipérboles e medindo as palavras: "O Tempo que Resta" é uma obra-prima e um dos filmes de 2006.