Uma Lauriane entediante
Aapresentação, em 1999, da versão de concerto da comédia lírica La Borghesina, de Augusto Machado (1845-1924), augurava boas expectativas para a recuperação da ópera Lauriane (do mesmo autor) em cena no Teatro de São Carlos depois de 121 anos de ausência. O sucesso desta obra em Marselha e em Lisboa nos finais do século XIX era também um dado promissor, mas a realização moderna acabou por se revelar decepcionante. Machado é considerado um dos primeiros compositores portugueses a trocar o italianismo dominante por influências francesas e com um papel relevante na transformação da cena lírica nacional. No entanto, o século XIX é um período muito pouco estudado da história da música portuguesa pelo que a enfatização da importância de determinado autor deve sempre ser relativizada - tarefa dificultada pela ausência de edições modernas das partituras e de execuções.
Recuperando na íntegra a versão francesa de Lauriane (que tinha sido traduzida para italiano quando foi apresentada no São Carlos em 1884) pôde ouvir-se a obra de um compositor que dominava com profissionalismo as ferramentas básicas do seu métier e que partilha códigos com Massenet, Gounod ou Bizet, mas que não foi além das soluções mais estereotipadas. A obra é longuíssima e tem a agravante de ter sido escrita a partir de um libreto débil (baseado no drama de George Sand e Paul Meurice) com personagens de pouca densidade psicológica. A vitaliade musical de La Borghesina e até de operetas como O Espadachim do Outeiro pareceu estar ausente do projecto mais "sério" e ambicioso de Lauriane, dando a entender que Machado encontraria outra espontaneidade de expressão em géneros de menor envergadura.
Por outro lado, a ópera de Machado foi prejudicada por uma encenação (de Mario Avogadro) tão ou mais convencional que a partitura (estática, pesada e pouco convincente na caracterização dramatúrgica de sentimentos e situações) e por um bailado de inenarrável kitsch no segundo acto (interpretado por elementos da Companhia Nacional de Bailado), com uma coreografia (de Ron Howell) de uma confrangedora falta de ideias.
O elenco vocal mostrou competência, mas a interpretação foi em geral morna. Destaca-se a bela voz de José Fardilha (Conde D"Almivar), em óptima forma vocal e com uma convicção teatral que faltou a alguns dos seus colegas, e o barítono Leo An como Marquês de Bois-Doré. Reconhece-se em Katia Pellegrino uma boa cantora, com a facilidade nos agudos que o papel requer, mas em termos teatrais a sua Lauriane foi algo frouxa. O tenor Kostyantyn Andreyev (Jovelin) tentou impor-se pela força em detrimento da subtileza e Paul Medioni (Adamas) revelou uma voz pouco timbrada. Em contrapartida tivemos prestações vocais adequadas de Marina Comparato (Mario) e Carlos Guilherme (Guillaume d"Ars). O Coro teve boas intervenções, mas a execução da Sinfónica Portuguesa pautou-se por uma certa falta de convicção. Donato Renzetti, que nos tem dado boas provas noutra ocasiões, parece ter ficado desta vez por um trabalho mais superficial.
Assim como as encomendas a compositores contemporâneos acarretam riscos também a reavaliação do repertório do passado pode ser uma aventura. Por muito que se analise uma partitura há coisas que só se constatam na prática da execução. A missão de um teatro nacional passa também por este tipo de iniciativas, mas é preciso muito cuidado com as escolhas e com a sua concretização. No futuro seria, de resto, pertinente ver o São Carlos apostar nas numerosas óperas portuguesas do século XVIII, um período que aparentemente parece ter material bem mais interessante e rico e obras que se podem montar em produções leves (algumas poderiam ser feitas no Salão Nobre), antes de arriscar voos mais altos.