São Carlos recupera ópera portuguesa 120 anos depois da estreia
As óperas de Augusto Machado nunca foram vistas e ouvidas por ninguém que esteja vivo. Foi ele que libertou o São Carlos do "italianismo"
"É um acontecimento", diz a musicóloga Paula Gomes Ribeiro, sobre a nova produção da ópera Lauriane, do compositor português Augusto Machado, que sobe hoje ao palco do Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa. Mais de 120 anos depois de se ter estreado em Portugal, vai ser possível "ouvir a ópera pela primeira vez em francês, a língua original em que foi escrita". Porque a estreia mundial de Lauriane foi no Grand Théâtre de Marseille (França), a 9 de Janeiro de 1883. Mas por causa do "italianismo" do São Carlos - leia-se domínio completo da ópera italiana -, contra o qual lutou Machado, Lauriane foi traduzida para italiano depois de se ter estreado em francês em Marselha, "numa cedência do compositor", comenta a musicóloga do Departamento de Ciência Musicais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
O maestro João Paulo Santos, que recuperou a ópera através de uma edição crítica da partitura original, dá também a dimensão do acontecimento: "Não há pessoas vivas que tenham visto e ouvido uma ópera de Machado." Recentemente, o São Carlos já assistiu a uma versão concerto de La Borghesina e o Centro Cultural Olga Cadaval à opereta O Espadachim do Outeiro. Augusto Machado, acrescenta o maestro, "é citado na história da música portuguesa como a pessoa que fez o primeiro corte com a tradição italiana", quando Rossini, Donizetti, Bellini e Verdi eram muito tocados.
Facto extraordinárioA imprensa especializada da época diz a 1 de Abril de 1885, na revista Amphion, a propósito da reposição de Lauriane em Portugal, um ano depois da estreia em Lisboa: "Deu-se ultimamente em São Carlos um facto extraordinário que encerra a máxima importância para a arte nacional, e que há perto de 60 anos não tem exemplo nos anais do nosso teatro lírico: a reprise de uma ópera portuguesa!"
Paula Gomes Ribeiro diz que Lauriane é muito bem acolhida pelo público e crítica: "Quando estreia cá é a ópera com mais récitas na temporada. Foram doze. O público aplaude e a crítica sente que ele vem transformar a tradição operática."
A estreia de Lauriane, juntamente com a de Richard Wagner (Lohengrin, em 1883), é, aliás, vista como uma viragem na cena lírica portuguesa. "O Machado com Lauriane vem efectivamente fazer uma nova proposta dentro do panorama musical português. Nesse sentido, ele é verdadeiramente revolucionário. Quando Lauriane se estreia, já se vê em Portugal a força na cultura das influências francesa e inglesa - mais a de França -, mas na ópera, em São Carlos, isso não se sentia ainda."
A influência da CarmenSe a crítica fala de "uma página sublime de música francesa", o maestro João Paulo Santos diz que "é óbvio, ao fazer-se agora a Lauriane, que Machado ouviu a Carmen, de Bizet", estreada em Paris em 1875. Paula Gomes Ribeiro diz que há muitas influências de Bizet, mas cita também, tal como o maestro, outros compositores franceses: "Bizet talvez seja quem aparece em primeiro lugar, mas sem esquecer Massenet, Saint-Säens, Gounod e Delibes. Existe um melodismo próximo de Bizet e Gounod, que são os compositores que estão a criar uma nova via dentro da tradição operática. Uma ópera que se aproxima mais da realidade do espectador. São personagens menos deificados, históricos ou mitológicos."
A Carmen de Bizet "soa" na Cène de la Bonne Aventure, diz Paula Gomes Ribeiro. "Sente-se o pulsar, num nível mais geral, da escrita melódica e rítmica. E também na criação de uma atmosfera de cor local, na influência de melodias e ritmos de tradição popular."
Um compositor organizado
Para fixar a partitura, o maestro João Paulo Santos consultou entre 60 a 70 documentos relacionados com a Lauriane que existem na Biblioteca Nacional, entre os quais quatro cópias da partitura. "Não foi muito complicado, porque Augusto Machado é bastante organizadinho. Mas as partituras de época são sempre cheias de imprecisões." Um exemplo? "Uma indicação a meio da página de uma dinâmica - mais ou menos intensidade de som - pode servir para a página toda." Outro? "Escreveu uma coisa para as violas de arco e ao experimentar viu que estava muito difícil e simplificou - é proverbial a falta de qualidade das violas. Neste caso, pareceu-me que se devia recuperar a primeira ideia."
Sobre a qualidade da ópera o maestro diz que é escrita dentro dos cânones do que é a música da época: "É uma coisa com segurança e bom gosto. Não vai soar como uma surpresa, a não ser a de termos cá uma coisa destas. Não se sente nunca um passo de génio."