SIMONE DE BEAUVOIR A mulher a quem as mulheres devem tudo
Há vinte anos morria em Paris Simone de Beauvoir, a intelectual francesa
cujas reflexões contribuíram poderosamente para mudar o estatuto da mulher.
O seu livro "O Segundo Sexo" foi um dos elementos detonadores das transformações que se sucederam nas sociedades do mundo ocidental a partir dos anos 60
"Mulheres, vocês devem-lhe tudo." É com esta frase da filósofa Elizabeth Badinter que a imprensa francesa, inglesa e americana presta homenagem, em manchete, a Simone de Beauvoir, quando a ensaísta, escritora e inspiradora do feminismo morre em Paris, a 14 de Abril de 1986. Universitárias do mundo inteiro viajaram até à capital francesa para acompanharem a autora d"O Segundo Sexo até ao cemitério de Montparnasse, onde seria enterrada ao lado do seu eterno companheiro, Jean-Paul Sartre. Quatro ministros seguem atrás do caixão. Mas o que mais impressiona é a multidão anónima de cinco mil pessoas que adensa o cortejo fúnebre, num derradeiro adeus à autora de um livro que ultrapassou fronteiras e mudou o estatuto da mulher.
O Segundo Sexo, proibido pelo Vaticano desde a sua publicação, em 1949, foi um dos elementos detonadores das transformações que se sucederam nas sociedades do mundo ocidental a partir dos anos 60, 70. "Não se nasce mulher, torna-se mulher", explica a autora, evocando os mitos que, em todas as civilizações, serviram para deixar à mulher um lugar subalterno. Por isso, em frente da campa, houve quem reagisse com indignação ao ver o nome de Simone de Beauvoir gravado por debaixo do de Jean-Paul Sartre, e não ao lado.
Nos anos 1930, a menina bem comportada do começo do século tornara-se na mulher jovem, emancipada do seu meio social mas um tanto desajeitada, que corrigia os manuscritos do filósofo do existencialismo. Simone de Beauvoir empreendeu, no entanto, uma obra que a obrigou, muito cedo, a ter um pedestal seu, em vez de partilhar o de Jean-Paul Sartre. Ligada para a vida inteira ao seu colega do curso de Filosofia, Simone de Beauvoir nunca quis competir com ele. A relação do casal, mais intelectual do que física, era baseada na igualdade de espírito - uma verdadeira revolução na época.
Castor - a alcunha dada a Simone de Beauvoir pelos seus amigos na universidade, porque "castor" diz-se "beaver" em inglês - recusou sempre o casamento, que representava para ela uma forma de escravatura e de alienação da mulher. Sartre vai mais longe, e propõe um "pacto" que autoriza a ambos os "amores contingentes", mas que proíbe a mentira no casal. "O nosso entendimento estava fundado numa igualdade e numa reciprocidade absolutas", recorda Simone de Beauvoir nas suas memórias, A Cerimónia do Adeus.
Beauvoir começara por consagrar quase todo o seu tempo a explicar ao mundo o que era o existencialismo, quase personificado por Sartre. Este movimento filosófico, que encontra as suas raízes na obra de Heidegger e de Kierkegaard, e que se interroga sobre o ser humano em geral, definindo-o pela sua experiência vivida e pelas suas escolhas, era reivindicado por toda uma juventude dourada do bairro de Saint-Germain-des-Près, em Paris, depois da Segunda Guerra mundial. Sartre e Beauvoir eram os seus ícones.
"Os dois entendiam-se de forma diferente, de uma maneira nova para nós. O que viviam era tão intenso que os que tinham sido testemunhas lamentavam não viver nada daquilo", dizia uma amiga comum, Colette Audry. A exaltação do casal era então visível, e oferta a todos, no Café de Flore, entre os cigarros acendidos nas beatas dos precedentes e os litros de café que serviam de carburante.
Professores de liceu nos anos 30 e 40, ambos tinham passado dias tranquilos na França ocupada pelo regime nazi, durante a Segunda Guerra, o que lhes será incriminado por certos intelectuais, já no fim da vida.
Mulher de várias paixões
Simone de Beauvoir tem na altura relações homossexuais com duas alunas, Olga e Bianca, mas a relação mais apaixonada da época descobre-a com um aluno de Sartre, "o pequeno Bost", nove anos mais novo do que ela, e futuro marido de Olga, que entretanto se torna na amante de Sartre. Este grupo de amigos, baptizado a "pequena família", permanecerá junto até à morte de cada um deles, apesar das muitas zangas e dos amuos.
Castor publica em 1943 o seu primeiro romance, A Convidada, no qual descreve a intriga do trio que formava com Sartre e Olga. Mas é com um escritor americano, Nelson Algren, que Simone de Beauvoir vai viver uma imensa paixão. Esta relação só foi conhecida depois da sua morte, quando a sua filha adoptiva, Sylvie Le Bon de Beauvoir, publica a correspondência incandescente de Castor a Nelson Algren.
As reflexões do escritor de Chicago sobre a discriminação racial dos negros americanos vão servir de detonador à reflexão de Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo. "Nenhum fatalismo biológico, psicológico ou económico determina a figura que o Ser feminino possui na sociedade; é a civilização no seu conjunto que determina esta criatura": estas linhas deram nascimento ao feminismo contemporâneo.
Será possível ler hoje O Segundo Sexo da mesma maneira, quando não se conheceu essa época arrepiante - não tão longínqua como isso - em que a mulher precisava da autorização do marido para trabalhar e para abrir uma conta bancária? "Os mitos que ela desenterrou na biologia, psicanálise, filosofia, economia e teoria política são tão potentes hoje como ontem, o que dá ainda matéria para controvérsia", escreve uma biógrafa britânica, Maureen Freely.
Desde 1949, O Segundo Sexo ganhou uma vida própria. Castor irritava-se ao ver a sua obra reduzida a este livro, mas quando o movimento de libertação da mulher surgiu com força, nos anos 70, considerou ser seu dever acompanhá-lo. Simone de Beauvoir não exerceu um poder real dentro do movimento, mas a sua influência de monstro sagrado foi imensa.
Em 1954, Beauvoir recebe o prémio Goncourt, com Os Mandarins. No entanto, Sartre continua sempre a ocupar o primeiro lugar. Beauvoir passou os anos 60 e 70 a opor-se com ele ao General De Gaulle e à guerra na Argélia, a fazer campanha contra a tortura, a visitar líderes dos movimentos de libertação em todo o mundo, a dar uma ajuda aos estudantes revoltados de Maio de 68, em Paris.
No fim do caminho, Simone de Beauvoir era uma velha senhora divertida com a ideia de ter sido transformada em "vestígio sagrado". Mas só depois da morte será descoberta a mulher apaixonada, fogosa e ardente, revelada na correspondência e nalguns escritos secretos, fielmente reunidos e publicados pela filha.