"Não somos diferentes dos judeus do século XVI"
Richard Zimler usou a matança de Lisboa como matriz para o seu primeiro romance, O Último Cabalista de Lisboa.
Por Inês Nadais
Ainda vivia em Nova Iorque quando começou a ler sobre o massacre de 1506 - e achou estranho que, sendo judeu e tendo estado tantas vezes em Portugal, nunca ninguém lhe tivesse falado do assunto. Em O Último Cabalista de Lisboa (Quetzal, 1996), escreveu: "Nós, os judeus de Lisboa, esperámos demasiado tempo para reviver o Êxodo, e o Faraó já se apercebeu dos nossos planos de fuga". Zimler é licenciado em Religião Comparada, mestre em Jornalismo e professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Vive no Porto desde 1990 e tem nacionalidade portuguesa desde 2002.
O que teve o pogrom de Lisboa de tão singular para levar um judeu nova-iorquino a escolhê-lo como pano de fundo do seu primeiro romance?Eu já conhecia bem Lisboa quando, em 1989, comecei a interessar-me pelo massacre de 1506 e a recolher documentação sobre o assunto, sobretudo num livro de um perito da Universidade de Columbia, Yosef Hayim Yerushalmi. Exactamente por isso, consegui visualizar perfeitamente este pogrom: já tinha estado no Largo de S. Domingos, conseguia imaginar a pilha de cristãos-novos a arder em frente à igreja. Para mim, o pogrom de Lisboa nunca foi um facto histórico, longínquo. Mas o que mais me fascinou foi outra coisa: tinha estado várias vezes em Portugal antes de estudar o massacre e nunca ninguém me tinha falado dele. O facto de um acontecimento tão trágico ser completamente desconhecido intrigou-me imenso.
O que explica essa omissão?
Creio que há dois factores em jogo. Por um lado, não há nenhuma sociedade que goste de destacar os aspectos negativos da sua história. Nos EUA, raramente falamos do genocídio dos índios pré-colombianos; em Portugal, fala-se muito mais dos Descobrimentos e de Fernando Pessoa do que da Inquisição. Por outro lado, é preciso perceber que o massacre de 1506 foi a segunda etapa do desaparecimento da cultura judaica em Portugal - o primeiro tinha sido a conversão forçada de 1496, o terceiro viria a ser o estabelecimento da Inquisição, em 1536. Como a cultura judaica praticamente desapareceu do país, não havia ninguém para evocar a memória do massacre. As pessoas mais sensíveis ao tema eram de fé judaica - e essas tinham sido anuladas. A fé, a cultura e a história dos judeus portugueses tinham desaparecido do mapa.
500 anos depois, que significado pode ter a evocação do massacre para os judeus que vivem hoje em Portugal?
Quando eu era mais jovem, acreditava que se podia aprender com a História. Hoje já não acredito nisso: vejo à minha volta tantas asneiras - a intervenção norte-americana no Iraque, os genocídios da Bósnia e do Ruanda - que não me parece que a História sirva para ensinar o que quer que seja. A razão pela qual acho que é importante lembrar este acontecimento é outra: acredito que só a memória do passado torna a vida humana. Sem essa memória, podemos perfeitamente pensar que somos diferentes dos romanos do século I d.C. ou dos judeus do século XVI. Não somos - somos iguais. Creio que os judeus portugueses evocarão o massacre com seriedade e lamentação. Mas a tradição judaica não se esgota na evocação do passado: convida a refazer o passado, a revivê-lo. Em todas as comemorações judaicas, nós habitamos os papéis dos nossos antepassados. Para mim, esse é o dado fundamental do judaísmo. Neste caso, recordar o massacre é assumir os papéis dos cristãos-novos que foram mortos. E é o próprio acto de habitar os corpos e as cabeças das pessoas que morreram que torna esta data importante para os judeus.