Querido pai, porque acho mais fácil escrever do que falar...
Exposição em Amesterdão com cartas inéditas de Anne Frank que mostram a evolução da escritora
Parecem cartas inocentes, onde uma criança faz uma lista dos presentes ou diz que não a deixam ir para a piscina. Só que a criança é Anne Frank, símbolo do sofrimento judeu, e as cartas, desconhecidas até hoje, estão na exposição Anne Frank, a Sua Vida em Cartas, que abriu esta semana no Museu Histórico de Amesterdão.O famoso Diário de Anne Frank, também escrito em forma epistolar, conta a vida de Anne, a sua família e outros quatro judeus, escondidos durante dois anos num edifício em Amesterdão para evitar a deportação depois da invasão da Holanda pelos nazis. A Gestapo, porém, encontrou-os em 1944, depois de uma denúncia. Anne Frank morreu de febre tifóide no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha, no fim de Fevereiro de 1945, pouco tempo antes da libertação do campo. Tinha 15 anos
O seu diário tornou-se um ícone do sofrimento dos judeus durante a II Guerra Mundial.
Muito menos conhecida é a correspondência de Anne Frank anterior ou coincidente com diário. Cartas e postais que escrevia à família e amigos. Cerca de 20 destas cartas foram disponibilizadas recentemente por um primo, Buddy Elias, e são mostradas agora pela primeira vez em público. Mas há também uma carta escrita ao pai, cujo conteúdo se cruza com o do diário, porque Anne Frank o usava para clarificar ideias.
Uma das carta foi enviada em Junho de 1941 à sua avó, Alice Frank-Stern e família, que viviam em Basileia, Suíça. É já posterior à invasão da Holanda pelo exército nazi, a 10 de Maio de 1940, mas Anne ainda não estava no esconderijo (o diário é escrito entre Junho de 1942 e Agosto de 1944).
É nesta carta que há uma referência aos regulamentos anti-judeus, que proíbem o uso do fato de banho, tema raramente abordado, assim como a guerra.
Querida avozinha e todos os outros,
Obrigada a todos pela linda carta de aniversário. Li-a pela primeira vez no dia 20 quando o dia de anos já tinha passado, porque a avozinha tinha sido levada para o hospital a 11. Tive muitos presentes da avozinha - 2,5 florins e um atlas. Do papá e da mamã tive uma bicicleta, uma nova malinha, um vestido para a praia e muitas outras coisas. A Margot deu-me este papel de escrever, porque já não tinha mais, e também tive muitos doces e outros pequenos presentes. Está muito calor aqui, aí também está assim? [...] Ontem, saí com Sanne, Hanneli e um rapaz, foi muito divertido. Havia rapazes suficientes para me fazerem companhia. Não consegui ficar queimada porque não nos deixam ir para a piscina. É uma pena, mas não há nada que possa fazer[...].
Há outra carta de Anna para o pai, Otto Frank, o único do grupo que sobreviveu ao campo de concentração. Foi enviada a 5 de Maio de 1944. Anna fala ao pai da sua paixão por Peter van Pels, que o pai contrariava. Anna, zangada, justifica-se e luta. O mesmo assunto aparece em forma de rascunho no diário. O pai disse-lhe que ia deitar fora a carta, mas esta foi encontrada depois de Otto Frank morrer. Aqui, Anna já se vê como uma adulta e a sua escrita torna-se mais sofisticada.
Querido pai,Penso que espera uma explicação minha, portanto vou dá-la, e porque acho mais fácil escrever do que falar faço-o no papel. Acredito que esteja desiludido comigo, que esperava um maior controlo da minha parte, mas preocupa-se com coisas que não tem de se preocupar. Desde que estamos aqui, de Julho de 1942 até há duas semanas, não tem sido fácil. Se soubesse o que costumava chorar à noite, quanto estava desencorajada e infeliz, como me sentia sozinha, ia perceber a minha vontade em ir lá para cima! [...] Não pense em mim como tendo 14 anos, uma vez que todos estes problemas me fizeram mais forte; não me arrependo das minhas acções [...].
Cartas traduzidas a partir dos exemplares publicados pelo Guardian. Adaptação de Isabel Salema.