O papel das mulheres no cristianismo nascente
Primeiras comunidades cristãs davam papel de igualdade a ambos os sexos, dizem biblistas
Elas estavam lá, desde o início. Cada vez mais, a investigação bíblica verifica que várias mulheres integravam o grupo dos que acompanhavam Jesus. "A conclusão a tirar é que, no tempo histórico da pregação de Jesus na Galileia, havia um número de mulheres que colaborava com Jesus e com os Doze [apóstolos] de maneira activa e consequente", diz o biblista Joaquim Carreira das Neves. Numa sessão de um seminário internacional promovido pela Faculdade de Teologia (FT) da Universidade Católica, sobre a figura do Jesus histórico, este investigador afirmou que as mulheres eram discípulas de Jesus "em grau de igualdade com outros homens e mulheres que acreditavam em Jesus como profeta messiânico".
A questão é motivo de debate no cristianismo, de um modo especial dentro da Igreja Católica. Muitas vezes, o tema relaciona-se com o problema de saber se as mulheres podem ou não ser ordenadas como sacerdotes. A doutrina oficial da Igreja diz que tal não deve acontecer, escudada no argumento de que Jesus não teve mulheres nos doze apóstolos. No documento Inter insigniores, da Congregação para a Doutrina da Fé, então presidida pelo cardeal Joseph Ratzinger, o actual Papa afirmava que a Igreja "não se considera autorizada a admitir as mulheres à ordenação sacerdotal".
Carreira das Neves olha para esse texto como uma declaração "pastoral" e não dogmática que deixa espaço, por isso, para prosseguir a discussão. Certo é que, há mês e meio, numa reunião com párocos de Roma, o agora Bento XVI manteve a ideia do sacerdócio reservado a homens, mas admitiu que o lugar da mulher na Igreja deveria ser objecto de reflexão.
A actualidade não se pode desligar do que era a vida das primeiras comunidades cristãs. E, concordam cada vez mais os exegetas, as mulheres acompanharam os dois ou três anos de vida pública de Jesus. No mesmo seminário, Frédéric Manns, investigador e ex-director do Studium Biblicum Franciscanum, de Jerusalém, onde reside há 34 anos, afirmava também que "no grupo de permanentes que acompanhava Jesus havia mulheres". Uma atitude tanto mais ousada quanto, no judaísmo da época, as mulheres eram marginalizadas ao ponto de não servirem como testemunhas.
O catalão Armand Puig i Tàrrech, falando na mesma iniciativa da FT, acrescentava que "o cristianismo primitivo se construiu sobre o homem e a mulher, num nível de igualdade e fraternidade".
No último número da revista Le Monde de la Bible, estas ideias são confirmadas: Daniel Marguerat, professor de Novo Testamento em Lausanne (Suíça), cita os nomes de várias mulheres que são apresentadas nas cartas de Paulo como diaconisas (responsáveis pelo serviço da caridade nas comunidades cristãs). Essa presença de mulheres junto de Paulo ficou "retida por alguns mosaicos bizantinos", mas desapareceu em seguida "da memória cristã".
Na sua intervenção no seminário, Carreira das Neves referia o significado dos episódios em que as mulheres aparecem nos textos do Novo Testamento - ainda mais porque as atitudes de Jesus nesse campo contrariam a mentalidade do seu tempo. "Da diaconia de serviço amplo e indistinto das mulheres históricas do tempo do Jesus histórico passa-se para a diaconia ministerial de muitas mulheres das comunidades cristãs primitivas."
Já quanto à Última Ceia, e em declarações ao PÚBLICO, Carreira das Neves hesita na resposta a dar: "É um problema insolúvel. O evangelho diz que os homens e mulheres que acompanhavam Jesus foram da Galileia a Jerusalém por causa da Páscoa - e não por causa de Jesus. Depois, na Última Ceia, só estão Jesus e os Doze porquê?"
Serão esses relatos da ceia pascal de Jesus uma reconstrução dos homens que entretanto passaram a dominar nas comunidades cristãs nascentes? O frade franciscano diz que "não [há] dados para saber se que quem preside à eucaristia, no início, é homem ou mulher". Mas, para este especialista, autor de vários livros sobre a figura histórica de Jesus, o importante não está em saber o que aconteceu na ceia pascal: o problema, hoje, é "uma questão da Igreja e não do Jesus da história". Se "Jesus quebrou o sistema fechado da "honra e da vergonha" do patriarcalismo religioso judaico e da ética da família grega e romana", então a Igreja deve "repensar" a sua tradição, "recolocando a mulher no lugar que lhe compete, à luz da revelação da criação do homem e da mulher, depois de afastar os lugares bíblicos e teológicos do Antigo Testamento e Novo Testamento que prescreveram leis sobre a inferioridade da mulher em relação ao homem".