A Constituição de 1976 - Ontem e hoje

A Constituição actual é a mais complexa de todas as Constituições portuguesas - por receber os efeitos do denso e heterogéneo processo político do tempo da sua formação, por aglutinar contributos de partidos e forças sociais em luta, por beber em diversas internacionais ideológicas e por reflectir a anterior experiência constitucional do país.Elaborada por uma Assembleia Constituinte eleita por sufrágio universal (a primeira vez que este foi adoptado em Portugal), viria a ser aprovada a 2 de Abril de 1976, após dez meses de trabalhos vividos num tempo de conflito entre a legitimidade revolucionária e a legitimidade democrática - legitimidade democrática com que sempre se identificou e que acabaria por prevalecer.
É uma Constituição garantia e uma Constituição prospectiva. Tendo em conta o regime autoritário derrubado em 1974 e o que foram os riscos de implantação de nova ditadura em 1975, é uma Constituição muito preocupada com os direitos fundamentais dos cidadãos e dos trabalhadores e com a divisão do poder. Todavia, surgida em ambiente de repulsa do passado próximo e em que tudo parecia possível, procura vivificar e enriquecer o conteúdo da democracia, multiplicando as manifestações de igualdade efectiva, participação, intervenção, socialização, numa visão ampla e não sem alguns ingredientes de utopia.
Constituição pós-revolucionária (como tinham sido todas as Constituições anteriores, salvo a Carta Constitucional de 1826), a Constituição de 1976 é também uma Constituição compromissória - tal como outras o têm sido em análogas circunstâncias, quer em Portugal, quer no estrangeiro (assim, Weimar e Bona, as Constituições espanholas de 1931 e 1978, as francesas de 1946 e 1958, ou a brasileira de 1988). Ela traduz um compromisso - um "compromisso histórico" - imposto tanto pela representação proporcional (que não deu maioria absoluta a nenhum partido), como pelas circunstâncias e pelo estado do país.
II. Apesar das inelutáveis influências das Constituições que a precederam e de várias Constituições estrangeiras, a Constituição - no texto inicial e hoje, após sucessivas revisões - ostenta importantes marcas de singularidade (ou de relativa originalidade):
- Não só no dualismo de liberdades e de direitos económicos, sociais, culturais, mas também no enlace entre eles, operado, designadamente, pelo art.º 17.º;
- Na constitucionalização de novos direitos (arts. 26.º, 35.º, 38.º, 40.º, 41.º, n.º 6, etc.) e da vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias (art. 18.º, n.º 1);
- Na recepção formal da Declaração Universal dos Direitos do Homem enquanto critério de interpretação e integração das normas sobre direitos fundamentais (art. 16.º, n.º 2);
- Não só na proclamação do direito ao ambiente (art. 66.º), mas também na atribuição ao cidadão ameaçado ou lesado da faculdade de pedir a cessação das causas de violação e a respectiva indemnização (art. 55.º, n.º 3);
- No desenvolvimento emprestado à matéria da comunicação social e na constitucionalização dos direitos dos jornalistas (art. 38.º);
- Na proibição do lock-out (art. 57.º, n.º 3);
- No apelo à participação dos cidadãos, associações e grupos diversos nos procedimentos legislativos e administrativos; ou seja, à democracia participativa (arts. 2.º, 54.º, n.º 5, 56.º, n.º 2, 63.º, n.º 2, 64.º, n.º 4. 65.º, n.º 5, 67.º, n.º 2, 77.º, 80.º, 92.º, etc.);
- No tratamento sistemático prestado às eleições, aos partidos, aos grupos parlamentares e ao direito de oposição (arts. 113.º e segs. e 180.º);
- Na redobrada preocupação com os mecanismos de controlo recíproco dos órgãos de poder (arts. 111.º, 133.º, 163.º, etc.) e na constitucionalização do ombudsman, o provedor de Justiça (art. 23.º);
- Na coexistência de semipresidencialismo a nível nacional, parlamentarismo a nível de regiões autónomas (art. 231.º) e sistema directorial a nível de municípios (art. 239.º);
- No ambicioso sistema de fiscalização da constitucionalidade, com fiscalização concreta, fiscalização preventiva, fiscalização sucessiva abstracta e fiscalização de inconstitucionalidade por omissão;
- No carácter misto de fiscalização concreta, com competência de decisão de todos os tribunais e recurso, possível ou necessário, para a Comissão Constitucional, primeiro, e depois para o Tribunal Constitucional (art. 277.º e segs.);
- Na extensão da norma definidora de limites materiais de revisão constitucional (art. 288.º, 290.º em 1976);
Os constituintes pretenderam ainda construir uma organização económica muito original, conjugando o princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção, um socialismo autogestionário e a iniciativa privada. A realidade do país, as revisões constitucionais e a integração comunitária viriam mostrar que só poderia subsistir se entendida como economia mista ou pluralista, algo diferente, embora não contraposta ao modelo de Estado social europeu.
III. A Constituição continua sendo, após sete revisões constitucionais e a entrada de Portugal para a Comunidade Europeia e a passagem desta a União Europeia, além de tantas transformações registadas no país e no mundo, a mesma Constituição que a Assembleia Constituinte aprovou em 1976 - porque uma Constituição consiste, essencialmente, num complexo de princípios e não de preceitos.
Foram modificadas dezenas e dezenas de artigos, mas permaneceram os princípios cardeais que lhes conferem sentido e coerência. A Constituição continua sendo Constituição de liberdade e Constituição de solidariedade.
IV. Uma Constituição que perdura por um tempo relativamente longo vai-se realizando através da congregação de interpretação evolutiva, revisão constitucional e costume secundum, praeter e contra legem. Contudo, pode também acontecer que, noutros casos, o desenvolvimento da Constituição se efectue em períodos mais ou menos breves, através da sobreposição dos mecanismos de garantia da constitucionalidade e de revisão, sob o influxo da realidade constitucional.
O desenvolvimento constitucional não comporta a emergência de uma Constituição diversa, apenas traz a reorientação do sentido da Constituição vigente. De certo modo, os resultados a que se chega ou vai chegando, acham-se contidos na versão originária do ordenamento ou nos princípios fundamentais em que assenta; e ou se trata de um extrair das suas consequências lógicas ou da prevalência de certa interpretação possível sobre outra interpretação igualmente possível.
Foi um fenómeno de desenvolvimento constitucional, e não de ruptura, aquele que atravessou a Constituição de 1976 ao longo destas três décadas, por efeito da jurisprudência, das revisões constitucionais e da interacção dialéctica da aplicação das normas e do crescimento da cultura cívica do país.
V. Dúvidas de peso podem, no entanto, suscitar-se a propósito da União Europeia.
Por um lado, em 1976, a Europa tinha sido completamente ignorada no texto constitucional, o que, aliás, se compreende, tendo em conta o contexto do país e do próprio estádio de integração; e agora ela aparece, em numerosos preceitos [artigos 7.º, n.º 5 e 6, 8.º, n.º 4, 15.º, n.º 5, 133.º, alínea b), 161.º, alínea n), 163.º, alínea f), 164.º, alínea p), 197.º, n.º 1, alínea i), 227.º, n.º 1, alíneas v) e x)]. Por outro lado, e sobretudo, pode-se perguntar se as alterações ao artigo 7.º e o aditamento ao artigo 8.º, introduzido em 2004, ultrapassam os limites da soberania do Estado e do primado da Constituição e do poder constituinte nacional. Há quem assim o entenda, embora se possa atalhar com a invocação aí feita da subordinação sempre aos princípios fundamentais do Estado de direito democrático enquanto princípios constitucionais. De momento, não é possível responder com inteira segurança. Professor universitário

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