Penteados e massagens sobre carris não entusiasmam passageiros
Tang começa a massagem pelos lóbulos das orelhas, faz uma breve incursão pelo orifício da orelha, caminha para o coro cabeludo, avança pelas costas e braços, usando dedos, mãos e cotovelos
"Faz-se um refogado de cebola, tomate e alho, junta-se uma folha de louro e óleo de palma. À parte, numa caçarola, põe-se a galinha para ficar pré-cozida...". João Paulo bem podia continuar descrever a receita de moqueca de galinha até ao fim, sabe-a de cor de tanto a ver repetida no ecrã de televisão do comboio. O cabeleireiro incumbido de pentear gratuitamente os passageiros do Alfa Pendular Lisboa-Porto que o desejarem não tem tido que fazer. Entretém-se a dormir e a ver televisão. "É pena é estarem sempre a passar o mesmo programa", lamenta.O comboio de Lisboa para o Porto partiu às 5h55. Passados quase 20 dias do arranque da experiência que a CP tem a funcionar para divulgar os dois novos horários do comboio Alfa Pendular, João Paulo teve uma única cliente. "Os portugueses não são pessoas muito matinais. A esta hora querem é dormir", sentencia, desconsolado.
Hoje teve sorte. "Pode dar-me um jeitinho?", pergunta a sua única cliente nos 20 dias, uma funcionária pública de 52 anos que entra na estação de Santarém e veio repetir a experiência. Pergunta apenas se desta vez não vai faltar a corrente eléctrica ao secador. João Paulo retira da sacola a escova redonda e começa a trabalhar o cabelo preto de madeixas caju. Os seus pés, calçados com botas bicudas de cowboy, fazem uma coreografia de passos que o impede de se desequilibrar com o balanço do comboio. "Dentro do possível, está óptimo!", agradece Manuela no final do penteado.
Carla Coimbra, uma museóloga que veio espreitar, logo desiste de pentear os seus caracóis quando percebe que não há água para lavar o cabelo. "Se me puser só o secador pareço uma doidinha". Perante a desistência, João Paulo passa o resto da viagem a ver o costumeiro programa de culinária.
No cantinho zen da carruagem
Se a carruagem da manhã é de gente sonolenta, na da noite parece seguir muita gente agitada. "Ando sempre atrás dos gajos. Ando à nora", desabafa um passageiro com ar de jovem executivo. No corredor alcatifado de azul caminha para trás e para a frente, a falar ao telemóvel.
Sai para fumar e quando volta a conversa parece que não foi interrompida. "Isso é outra coisa que me chateia. Sim, "tou! "Tou a deixar de te ouvir". Mais uma pausa. "Mas quem é que são os gajos... "Tou!".
A proposta da CP neste novo horário da noite (que sai do Porto às 21h15 e chega a Lisboa às 00h15) é a massagem de relaxamento. A chinesa Tang Yagun atarrachou ao chão da carruagem uma cadeira de massagem que se molda ao corpo e aguarda clientes no "canto zen" de uma carruagem onde o stress parece abundar.
Dos poucos passageiros que seguem neste comboio muitos têm os computadores portáteis abertos à sua frente, clicam nos ratos, lêem jornais económicos, vestem fato escuro, falam ao telemóvel.
A conversa sobressaltada do jovem executivo contrasta com a calma da massagista Tang que, por causa da falta de clientes, faz a maior parte da viagem sentada a ler o que parece ser uma fotonovela chinesa. Tem tido entre quatro e oito clientes por viagem. A oferta é até 12 de Maio.
"Era capaz de ficar cliente"
Numa tentativa desesperada de passar tempo, lá distribui panfletos de divulgação aos passageiros mais próximos e diz "experimentem". Conseguiu um recruta renitente. "Achas que arrisque?", pergunta Alexandre Amaral ao colega, como quem pede um incentivo. "Experimenta", responde António Costa Silva. Os dois são comerciais de merchandising, um veste camisa às quadrículas largas, a do outro tem riscas horizontais finas.
Tang começa a massagem pelos lóbulos das orelhas, faz uma breve incursão pelo oríficio da orelha, caminha para o coro cabeludo, avança pelas costas e braços, usando dedos, mãos e cotovelos. Tudo acontece num recanto que de calmo tem pouco. O CD de sons orientais colocado nos ouvidos do massajado, com o título Budha e Bonsai, não consegue calar o ruído do comboio a circular nos carris e a passagem do carrinho dos jornais e depois do da comida não ajuda à descontracção. Alexandre é, ainda assim, um cliente satisfeito: "Fantástico, era capaz de ficar cliente".
Um inspector da função pública que prefere não ser identificado foi dos "pioneiros" destas massagens. Agora vai repetir. No final, à pergunta se tiveram efeito de acalmia, responde que ficou "vagamente relaxado". A nota de moderação no relax percebe-se. O seu passatempo nestas viagens "massacrantes", que é obrigado a fazer por motivos profissionais, é olhar para a velocidade a que segue o comboio.
"Está a ver a quanto é que isto vai?". O seu pensamento neste tempo "onde não acontece coisíssima nenhuma" é sempre o mesmo: "A viagem demora três horas mas podia levar metade". Afinal, os Alfa têm um focinho que faz lembrar um avião supersónico e uns interiores de aeronave, são anunciados como podendo circular a 220 quilómetros por hora, mas circulam a míseros 180 quilómetros/hora. "Agora vai a 120", nota.
Os parcos 15 minutos de viagem que a massagem gratuita lhe "come" não são suficientes para diminuir o martírio. Para além das massagens, era preciso também que a CP tivesse "meninas a cantar, um casino". "Isto podia levar uma hora e meia", vai repetindo, pouco relaxado.