Inéditos da juventude no espólio de Abelaira
O autor de A Cidade das Flores, que faria hoje 80 anos, deixou à Biblioteca Nacional três romances nunca publicados
Numa das suas últimas entrevistas, o escritor Augusto Abelaira - que hoje faria 80 anos - recordava os romances que escrevera "por volta dos 18, 19, 20 anos" e que na altura enviara a uma editora. "A editora respondeu-me que dada a carestia do papel não podia publicar. Fez muito bem em não ter publicado", contou Abelaira a Jussara Rowland, nessa conversa, publicada no PÚBLICO logo após a morte do escritor a 4 de Julho de 2003. Esses romances inéditos, escritos na juventude - Beco Sem Saída, Os Anos Inúteis e Lugar-geométrico - fazem parte do espólio de Abelaira que a filha, Sílvia Abelaira, doou à Biblioteca Nacional após a morte.
Este espólio - do qual a BN planeia organizar uma mostra pública em 2007 - inclui rascunhos de cartas enviadas e centenas de cartas recebidas. Numa, de Janeiro de 1970, escreve-lhe o poeta Eugénio de Andrade sobre o livro Bolor (de 1968): "Fui-o depois abrindo e lendo sempre com o mesmo encanto. É uma prosa envolvente a sua, e clara e limpa - se fosse música, estaria na linha transparente de um Purcell, um Mozart, um Ravel. É uma prosa muito perto da minha escrita, ao que penso. Não se esqueça de mim. Seu, Eugénio de Andrade."
De Bolor, Outrora Agora, ou A Cidade das Flores encontram-se no espólio os originais, com versões dactilografadas e escritas à mão (e também a tese de licenciatura, Um experiencialista do século XVI de Garcia da Horta: alguns problemas, para a qual existem planos de edição). São folhas amareladas cobertas com uma letra miúda, com notas, palavras riscadas, alterações. Foi uma recolha minuciosa, conta a filha, entre papéis espalhados por toda a casa e guardados dentro dos seis mil livros do pai.
Só nos últimos anos é que Abelaira - jornalista, director da Vida Mundial e da Seara Nova, e cronista no semanário O Jornal e no JL - trocou a máquina de escrever pelo computador. Mas, durante a maior parte da vida, preferiu escrever em sebentas fininhas e com papel de linhas. Gostava, sobretudo, de escrever em cafés, no meio da confusão.
Foi em 1959 que publicou a sua primeira obra, e aquele que viria a transformar-se num livro de referência para uma geração, A Cidade das Flores. Mas mesmo esse começo não foi fácil. Nenhuma editora se mostrou interessada nesse romance que descrevia a vida dos intelectuais antifascistas lisboetas, mas que, para evitar problemas com a censura, decorria na Florença dos anos 30, sob Mussolini. Abelaira acabou por lançá-lo em edição de autor - e foi ele próprio distribuir os primeiros exemplares, no Chiado.
Em 1949, com 23 anos, Abelaira escreveu Os Anos Inúteis (inédito), e para ele escolheu duas epígrafes. Uma de Antero de Quental: "Empunhasse eu a espada dos valentes [...]/ Já não veria dissipar-se a aurora/Dos meus inúteis anos." E outra de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, que foi sempre uma referência na sua obra: "Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram! Sei eu o que é útil ou inútil?)/ Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)...."