O mundo ao contrário

É isso que atrai Todd Johnson, um ex-diplomata americano de carreira, cego num acidente: aquilo que define como a combinação quase perfeita de charme, classe, educação, pragmatismo, resignação e tragédia e que sente na voz da condessa quando ela o salva de um mau passo. A condessa não tem ilusões. Isso torna-a ideal para prometer a ilusão de um mundo melhor, como anfitriã no clube nocturno que Johnson vai abrir em Xangai. Um mundo fora do mundo para onde ele quer escapar desde que o mundo real lhe roubou tudo. Um mundo fora do mundo que a condessa Sofia Belinskya sabe, por experiência própria, que não conseguirá nunca ficar de fora das pesadas portas do "Condessa Russa".

Amor? Não é isso que une o ex-diplomata e a aristocrata caídos em desgraça, pelo menos a princípio. Apenas uma promessa de conforto, de amizade; uma certa camaradagem do infortúnio, o reconhecimento um no outro de gente que sofreu e quer esquecer esse sofrimento. É isso que junta Todd Johnson e a condessa Sofia Belinskya: "nicheva", "seguimos em frente". O passado foi lá atrás. Importa apenas viver o presente, esperar por um futuro melhor. A tragédia de "A Condessa Russa" está em que estes dois vencidos da vida se encontram em Xangai em 1936, um ano antes da ocupação japonesa que só terminará no final da II Guerra Mundial, quando o mundo lá fora começa a desenhar os acontecimentos que vão esmagar o pequeno mundo do "Condessa Russa".

A Kazuo Ishiguro devia já James Ivory uma obra-prima, o sublime "Os Despojos do Dia" adaptado do romance do novelista inglês, meticulosa e infinitamente melancólica exploração do remorso daquilo que ficou por fazer, apoiada nas interpretações magistrais de Anthony Hopkins e Emma Thompson. A Ishiguro fica agora Ivory, o mais inglês dos cineastas americanos, capaz do magnífico e do académico (por vezes no espaço do mesmo filme), a dever um dos seus grandes filmes, desta vez a partir de um guião original do romancista. De académico há pouco em "A Condessa Russa", a não ser o fôlego quase épico de uma narrativa de época apresentada com a impecável reconstituição das produções inglesas (só que esta produção inglesa foi rodada na China, numa complexa engenharia financeira que envolveu capitais alemães, americanos e chineses - a última proeza de Ismail Merchant, o parceiro de sempre de Ivory, que faleceu durante a conclusão do filme). Antes pelo contrário, há uma modernidade quase intangível numa encenação que está sempre atenta aos pormenores, às mínimas nuances do trabalho dos actores, correndo o risco de tomar aquilo que parecem ser "desvios" à narrativa principal mas que acabam por ser peças importantes para a sua iluminação (e como é magnífica a fotografia do grande Christopher Doyle!) Os actores, precisamente: é demasiado fácil esquecer como Ralph Fiennes é um, grandíssimo, por vezes demasiado perdido em filmes indignos do seu talento; como Natasha Richardson raras vezes tem a hipótese de mostrar o que realmente vale. Ivory arranca deles prestações extraordinárias, tal como de um elenco de apoio (Allan Corduner, Hiroyuki Sanada, Lynn e Vanessa Redgrave, Madeleine Potter) que sabe tornar uma personagem, por mais pequena que seja, numa pessoa real de corpo e alma. Nada disto faria sentido se não houvesse um realizador atento às mais ínfimas modulações de ambiente exigidas por uma história destas: "A Condessa Russa" é - apesar de um ou outro momento menos feliz - uma "master class" de texturas, de filigranas, de construção. Uma miniatura de infinita delicadeza que respira como poucos outros filmes vistos nos últimos meses. Tudo em nome de um mundo que acabou - ou que, para Todd Johnson e a condessa Sofia Belinskya, apenas esteja a (re)começar.

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