O sino da aldeia dobrou contra a central nuclear há 30 anos
No dia 15 de Março de 1976, a população pegou nas alfaias agrícolas e marchou para os baldios do Moinho Velho, onde decorriam prospecções geológicas. Desmantelou tudo e fez a festa. A questão nuclear entrava na agenda política em Portugal. No próximo domingo, há uma concentração nacional para assinalar a efeméride. Por Carlos Pessoa
À saída da aldeia para norte, o fim do alcatrão assinala o início do caminho das Azenhas. Entre o mar, à esquerda, e colinas suaves, à direita, estende-se uma estrada estreita de terra batida, nesta altura bastante esburacada. A nortada moderada traz um sabor a mar que não afecta as culturas semeadas em rectângulos de terra bem traçados. Vê-se facilmente que são campos de areia generosos em água, com alho francês à espera de ser apanhado, batatais pujantes e repolho que ninguém recolheu.Ao olhar para estes hectares férteis, onde não se encontra vivalma nem construções até onde a vista alcança, ninguém ousaria dizer que foi exactamente aqui - a dois quilómetros da aldeia de Ferrel, no concelho de Peniche - que começou a luta contra o nuclear em Portugal.
No dia 15 de Março de 1976, data que será assinalada com uma concentração nacional naquela localidade no próximo domingo, pouco passava das sete da manhã quando o sino da Capela de Nossa Senhora da Guia, no centro de Ferrel, começou a tocar sem parar. Ao apelo respondeu a população em massa, concentrada no largo. Eram cerca de duas mil pessoas e traziam os instrumentos da sua faina quotidiana - enxadas e picaretas, manguais e podoas, sacholas e foices, forquilhas e ancinhos.
Faziam-se transportar em todos os meios possíveis, camionetas com atrelados, debulhadoras, motocultivadoras, burros e alguns tractores. Crealmina, uma pequena agricultora de quase 60 anos, ainda hoje viva, continuou a tocar o sino a rebate e, quando o badalo se desprendeu, pegou nele e continuou a fustigar a campânula.
Maria de Lurdes, proprietária de um café fronteiro ao local da concentração, assistiu a tudo, mas foi das poucas pessoas que não fizeram a marcha até ao Moinho Velho, para onde a população se deslocou a seguir. A decisão fora tomada alguns dias antes e tinha como finalidade pôr fim aos trabalhos de prospecção geológica desenvolvidos desde há algum tempo por ordem da Companhia Nacional de Electricidade (CNE, depois EDP).
Não se sabia ao certo para que serviam, mas as torres de perfuração e os poços com mais de dois metros de diâmetro e quase 30 de profundidade tinham chamado a atenção. Falava-se que era para preparar a construção de uma central nuclear, mas ninguém se dera ao trabalho de informar o povo de Ferrel, que não gostou de ver os baldios devassados. "Eram os nossos terrenos, mas não sabíamos de nada", confirma José Afonso, construtor e agricultor, hoje com 73 anos.
Quando todos chegaram, os trabalhos foram interrompidos e os operários afastados. O equipamento foi desmantelado e os poços fechados, com a promessa de que voltariam a fazer o mesmo se algum dia recomeçassem as actividades. Ao fim da manhã estava tudo acabado e o resto do dia foi de festa na aldeia.
A GNR não soube de nada. Os media nacionais também só souberam alguns dias mais tarde. Mas o que aconteceu não foi surpresa para o jornal regional Gazeta das Caldas, que tinha acompanhado as movimentações desde o início. E coube a O Arado, subintitulado "jornal popular do concelho de Peniche", distribuir no dia a seguir uma edição especial em que se dava conta da iniciativa. Um dos seus animadores era António José Correia, hoje presidente da Câmara de Peniche. "Estive lá e participei na marcha. Escrevi o texto, que depois foi citado por O Século, e o meu amigo Casimiro Clara fez as fotos", relatou ao PÚBLICO.
Na sequência destes acontecimentos, foi criada a Comissão de Apoio à Luta Contra a Ameaça Nuclear (CALCAN) de Ferrel. Nos anos seguintes, sucederam-se os debates e reuniões de esclarecimento na aldeia e na região, foram criados grupos de trabalho e feitos abaixo-assinados. Realizaram-se também reuniões com membros do Governo, deputados e partidos, mas nada demoveu a população, que não queria uma central na freguesia. "A situação era um pouco confusa, mas todos os partidos nos diziam que eram contra", diz Silvino João, hoje presidente da Junta de Freguesia de Ferrel.
Terrenos "dão bom repolho"
Quase um ano depois da marcha, em Fevereiro de 1977, era lançado o manifesto Somos Todos Moradores de Ferrel, contra a política pró-nuclear do Governo da altura (PS). À boca do Verão desse ano, é realizado nas Caldas o Fórum de Junho, para preparar o lançamento de uma moratória do programa nuclear português. Na mesma altura, é tornado público um manifesto sobre política energética, subscrito por 110 cientistas e técnicos ligados ao problema nuclear, em que se propõe a realização de um "debate nacional sobre a opção nuclear".
Em Janeiro de 1978, decorre nas Caldas da Rainha e em Ferrel o festival Pela Vida Contra o Nuclear, que reuniu cerca de três mil pessoas e colocou definitivamente a luta na agenda internacional.
A seguir ao Verão desse ano, começam a ser ocupados os terrenos baldios, plantando-se ali uma grande variedade de hortaliças. "A população agrícola ficou a viver melhor, porque os terrenos são muito ricos e dão bom repolho, alho francês, batata, ervilha, feijão-verde, fava, melancia, tudo! É quase uma mina de ouro!", exclama José Afonso.
A partir de 1982, deixa de se falar da central nuclear em Ferrel, situada quase em cima de uma falha tectónica que tornava o local inadequado para o fim em vista. Encerrava-se assim um ciclo em que "uma população essencialmente rural tomou em mãos uma luta, no anonimato e sem grande apoios exteriores", sublinha José Luís Almeida e Silva, director da Gazeta das Caldas.
Nuclear pôs aldeia no mapa
Ferrel é hoje uma freguesia em crescimento, que não foi prejudicada pela luta travada. Essa é a convicção de Silvino João: "Antes, ninguém nos conhecia, e, depois, passámos a estar inscritos no mapa". António José Correia tem a mesma opinião. "Ninguém falava da temática nuclear em Portugal e Ferrel pôs a questão na agenda". José Silvano, electricista da terra que também participou na marcha, exibe orgulhosamente um volumoso caderno de recortes de imprensa. "Eu dizia que era de Peniche, mas agora posso dizer que sou de Ferrel."