Alma imperfeita contra corpo perfeito

Que este lançamento desastrado não impeça de se reconhecer no filme de Mamoru Oshii, já autor do primeiro filme e aqui adaptando de novo livremente o "manga" criado nos anos 80 por Masamune Shirow, um apaixonante objecto que segue à risca a cartilha ciberpunk lançada por romancistas como William Gibson ou Bruce Sterling, ou pelo seminal filme de Ridley Scott "Blade Runner", numa inteligente alternância acção/reflexão ausente da maior parte das produções contemporâneas de género. É possível ver "Cidade Assombrada 2" sem ter visto "Ghost in the Shell" ("Cidade Assombrada" na tradução portuguesa) embora, evidentemente, isso possa criar problemas à compreensão de um universo bem mais denso do que é habitual na ficção científica ou na animação, levantando as questões existenciais que a maior parte da ficção de género deixa por investigar.

Num Oriente futuro onde a tecnologia é omnipresente, acompanhamos a investigação de uma série de assassínios cometidos por um andróide-protótipo por parte dos agentes de uma brigada especializada em crimes cibernéticos que são, eles próprios, cyborgs - cérebros humanos ampliados electronicamente, instalados em corpos em grande parte artificiais. O aforismo cartesiano "penso, logo existo" levanta questões de difícil resolução no caso desta gente que atravessa a fronteira entre o humano e o artificial, onde já não se consegue dizer o que é consciência humana (alma, se quisermos) e o que é inteligência artificial. E essa divisão tornar-se-á fulcral para a resolução do mistério central que o ex-militar das forças especiais Batou investiga: porque é que estes andróides de prazer que andam a eliminar altas individualidades ligadas de alguma maneira à companhia que os produziu parecem estar a pedir ajuda antes de serem desactivados pelos seus crimes sanguinários? Se é possível começar a duvidar da nossa própria identidade, da nossa própria consciência, quanto falta até começarmos a questionar a própria realidade do mundo que nos rodeia?

Essas questões são encenadas por Mamoru Oshii, tal como já acontecera no primeiro "Ghost in the Shell", numa combinação entre personagens desenhadas em animação tradicional e cenários concebidos em animação por computador, hoje muito mais sofisticada que em 1995, quando o primeiro filme foi realizado. A discrepância evidente entre as duas técnicas é uma opção estética usada como sublinhado dos temas do filme - a alma imperfeita contra o corpo perfeito, a personalidade espontânea do manual contra a perfeição fria do digital, o todo contado de forma pausada e paciente, muito oriental, em imagens de uma extraordinária beleza contemplativa, acertadamente ilustradas pela música evocativa de Kenji Kawai. É verdade que Oshii não resiste a sobrecarregar o filme de diálogos filosóficos e exposição conceptual que correm o risco de perder o espectador a certa altura, mas o facto é que esse é o risco inerente a querer fazer algo de mais significativo do que um mero "anime" - e estamos a falar de um realizador que ergue a mestre Jean-Luc Godard e cita abertamente no seu guião Shelley, Darwin, Descartes, Confúcio, Browning, Milton.

Talvez seja mais honesto dizer que "Cidade Assombrada 2" não são desenhos animados, mas grande cinema de autor.

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