O espelho mágico
"Não se pode ensinar nem a sabedoria nem o prazer." Mas também não se pode ensinar a transformar em cinema a viagem de Bahia com a mulher, como não se pode pedir ao desejo que salve o mundo
Aclamado pela crítica internacional como um dos cumes da arte de Oliveira, silenciado pela crítica doméstica que anda por aí muito entretida com coisas ruins que se ufanam da falta de estudo e de formação, estreou-se nos nossos cinemas Espelho Mágico de Manoel de Oliveira.Em 2001, 2002 e 2003, Agustina Bessa-Luís publicou a trilogia O Princípio da Incerteza. Em 2002, regressado do Porto da sua infância - onde Agustina também foi convocada -, Oliveira adaptou o primeiro volume. Não lhe deu o título original (Jóia de Família) mas invocou motivos pudibundos para lhe dar o nome da trilogia. Ou seja, escolheu para a parte o nome do todo.
Três anos depois, "inspirou-se livremente" no segundo volume da trilogia - chamado em Agustina A Alma dos Ricos - e afastou-se ainda mais do contexto e das capitulares. Espelho Mágico volveu-se na história de Alfreda, nome que Agustina dizia significar o princípio de todas as coisas. Mas não há propriamente princípio no primeiro plano de interior do filme, esse em que vemos, no grande espelho de um guarda-vestidos, Alfreda e a irmã Noémia recordar a infância, figurada, depois num breve flash-back. A intensa especularidade desse plano abrupto reenvia a um retorno e é de um eterno retorno que o filme de Oliveira fala, longe da alma dos ricos mas perto dos seus corpos.
Mas, no penúltimo plano do filme, volta-se da incerta finalidade ao princípio da incerteza. Comentando "a luz ao fundo do túnel", que Alfreda terá visto quando voltou do coma, Luciano, seu servo, seu senhor ou seu anjo, pergunta-se se essa luz não será a memória esquecida do bebé quando nasce do escuro para a luz do dia. "Quem me garante isso?", pergunta outra personagem. "Ora aí é que está o princípio da incerteza", responde Luciano no meio do riso geral.
Antes do tão nostálgico e tão comovente plano final (mas sobre esse não me pronuncio eu), Oliveira convoca à irrisão o famoso princípio da incerteza. Mas também o convoca ao máximo espelhismo: a morte como espelho do nascimento e o nascimento como espelho da morte.
Só que, quando esse espelhismo atinge a sua dimensão mais demencial, numa das sequências fulcrais do génio de Oliveira (refiro-me à sequência, no quarto de Alfreda, enquanto esta agoniza), a enfermeira, a quem cabe a primeira ronda da noite (ronda dos espelhos) diz, fitando-se num deles: "Eis a inevitável presença do nosso inevitável eu." E ocorre perguntar quem é que está inevitavelmente presente naquela casa tourneuriana ou hitchcockiana, como nunca houve outra igual, casa que se apaga e acende magicamente, com a noite e os dias? A morte? A vida? A Mulher? O princípio de todas as coisas? O fim de todas as coisas? A Virgem Santíssima, de quem Alfreda espera a Aparição, à hora do chá, para uma conversa civilizada? Ou o demónio, citado algumas vezes no filme e nele figurado pela serpente, que por duas vezes irrompe, uma vez na quinta, junto ao sexo de Luciano, e outra no Horto das Oliveiras, onde é presença quase blasfema? Pode responder-se, como Agustina respondeu no fim da Alma dos Ricos: "Mas os homens sempre inventam quando se trata das mulheres. Uns mais, outros menos" e ver neste prodigioso filme uma mágica invenção (ou uma mágica provocação) sobre o sexo e sobre a mulher. Mas pode ver-se, sem querer ser paradoxal, tudo o que se vê quando não se vê (como Alfreda terá visto Veneza e Jerusalém) ou seja a visão especular de um mundo que só como espelho existe. É quando mais me lembro do pasmoso diálogo entre Alfreda e a Freira. Essa que, quando chegou ao filme, lhe mudou a escala dos planos (nos campos e contracampos dos grandes planos do primeiro encontro no jardim) diz-lhe: "Eu só sei do mal que se deve evitar viver perto do rio: a água é boa para a sede, mas é má para os ossos. A mesma coisa pode ser salvação e castigo." Alfreda escolheu viver perto do rio (o Lima do esquecimento) e sempre que se banhava na piscina surgia a salvação ou o castigo. O roupão branco e o fato de banho azul.
Mas, nestas coisas de magia, convém andar muito devagarinho.
Por isso volto ao princípio e à incerteza dele. Tanto Agustina como Oliveira se viram livres, neste segundo painel do díptico ou do tríptico, de quase todas as personagens do primeiro volume ou do primeiro filme. Oliveira ainda procede (no início e nas cenas da prisão) a uma espécie de resumo do filme anterior. Mas as presenças maiores de O Princípio da Incerteza estão ausentes de Espelho Mágico. Uma personagem contudo atravessa os dois filmes. É Luciano, o "Touro Azul" (Ricardo Trepa), que aqui não parece existir senão para acompanhar a Senhora (Alfreda), mas que é não só o instigador da conjura da Aparição e o inventor de Abril ("oh, mulher bendita!" nesse plano bendito, em que, toda de branco e lenço azul pálido sobre a cabeça, Abril surge no filme, num momento de cinema para que não há adjectivos) como (nos dois encontros junto à piscina) o detonador de um mal ou de um bem que também são salvação ou castigo.
Sublinho outro dos grandes momentos de Espelho Mágico: o plano junto ao Lima, em que Alfreda é absorvida pelos reflexos das luzes no rio, como pedras preciosas, outonais e mágicas, que propiciassem a tão desejada Aparição. E, de súbito, ouve-se uma voz off "estranha voz que me apazigua", que, se não fosse o timbre, podia ser a voz da Virgem, ou de Abril convertida nela. Só quando Alfreda repete duas vezes que não sabe quem lhe está a falar, é que Luciano (sempre em off) se identifica. Mas até aí, invisível, fora um anjo, o anjo que precede as aparições e que é reconhecível pela voz mais do que pela imagem. Luciano é, novamente, aquele que prenuncia tudo, mas não concretiza nada e, cordeiro de Deus, expia os pecados dos outros.
Além de Luciano, outra personagem passou de O Princípio da Incerteza para Espelho Mágico, embora neste muito efemeramente. É Celsa (Isabel Ruth) a mãe de Luciano. Aqui, nunca visita o filho preso e apenas a conhecemos no cemitério, dizendo que o diabo se meteu por ali (é a primeira a dizê-lo). A morte da mãe, após a saída de Luciano da cadeia, é notícia dada pelo irmão numa sala dominada pelo retrato, entre todos maternal, de Lucrecia Panciatichi de Bronzino, da qual se destacam sobretudo as mãos-mães, que tanto pano para mangas já me deram em crónica anterior.
Alfreda será a nova mãe que Luciano vai procurar? Será mãe, será senhora, será amante, mas é seguramente o perfume das mulheres ocultas da obra anterior e o espelho da Virgem que nunca aparecerá.
É depois de saber da morte da mãe, que outra mãe - a fabulosa casa - entra no filme, ligado ao tema do esquecimento. Há os planos geniais dos átrios, os plongés e contra-plongés, as clarabóias e é nessa casa embruxada (casa que mete medo, casa de todos os espelhos, casa das escadarias que "devem ser cópia da que dá acesso ao céu") que nos situamos no primeiro jantar de espectros, em que às donas dela se reúnem as autoridades bíblicas e os padres, num sagrado também espelhado (o riso indefinível de Piccoli, o olhar rude de Clodel) ou num segredo para que não são chaves as citações bíblicas, ortodoxas ou heterodoxas, crípticas ou apócrifas, que sulcam o filme até Ricardo se elevar nos ares em busca do chapéu de Alfreda.
A animalística é estranhíssima (os elefantes), as trutas têm larvas nas guelras e é o que não entendemos que é objecto de culto. A sacralidade e o demonismo do filme acentuam-se com os recorrentes planos da casa, vista ao crepúsculo ou à noite, entre as flores de mil pomares e os canteiros de uma vaga insinuação. Sulamite e Cher. A alma dos ricos. Os pavões brancos. A freira. Como é que tudo mudou tanto e ainda não aconteceu nada?
Mas alguma coisa acontece? Abril nunca chega a fingir de Virgem e a única aparição é a de Luciano a Alfreda, antes da doença e do coma. O falsário nunca chega a falsificar nada, senão o seu casamento com a suposta Virgem. Padres e freiras vão e vêm mas nenhum Gamaliel encontrou mestres para evitar a dúvida e, no plano mais desmedidamente especular da obra, só Alfreda se espelha no corpo do Padre Clodel, falando de efeitos de sedução.
"Não se pode ensinar nem a sabedoria nem o prazer." Mas também não se pode ensinar a transformar em cinema a viagem de Bahia com a mulher, como não se pode pedir ao desejo que salve o mundo.
"Um dia veremos face a face", disse o Apóstolo que o Padre Clodel acusava Alfreda de citar abusivamente. "Mas por ora vemos como num espelho." A imagem do espelho é a imagem invertida. Mas, se o espelho for mágico e só deixar de nós imagens como a desse derradeiro concerto, numa casa de que tanto apetece fugir como a que tanto apetece voltar?
Onde é que tudo começou? No princípio. No princípio da incerteza. Que só a imensidão do belo deste filme contraria com uma certeza. La certitude du beau, de que falava o poeta, que, uma vez mais e cada vez melhor, Oliveira filma.