Dee Dee Bridgewater e o talento de uma grande voz
A cantora norte-americana Dee Dee Bridgewater veio a Portugal apresentar o seu novo projecto musical J"ai deux amours. Estruturado à volta do cancioneiro francês mais emotivo, Dee Dee quis homenagear Paris, a cidade que relançou a sua carreira. Acompanhada por um quarteto de grande qualidade, a cantora conseguiu surpreender-nos com cada canção, acentuando a carga dramática das palavras com a clareza da sua voz. Os arranjos originais dos conhecidos temas foram ainda um contributo significativo para o sucesso do concerto, dando um novo contexto à música.O repertório estava claramente ensaiado ao milímetro, mas a qualidade artística dos intervenientes permitiu que a música soasse sempre com convicção e espontaneidade. A coreografia de cada movimento da cantora, assim como o domínio da dimensão cénica do palco, estiveram invariavelmente ao serviço da sua voz e do pathos estritamente necessário para a apropriação de cada tema. O criterioso naipe de instrumentos (acordeão, guitarra, contrabaixo e bateria) deu grande profundidade de campo à música, permitindo à cantora pairar sobre a densidade sonora da banda.
O concerto começou bem com uma excelente introdução à valsa J"ai deux amours, pelo acordeão de Louis Winsberg. No entanto, foi na segunda canção que o grupo começou a dar largas ao seu talento. Dee Dee entrou a solar em scat sobre uma densa malha de ritmos sobrepostos. Na introdução, a justaposição dos padrões africanos da guitarra de Marc Berthoumieux contrastou surpreendentemente com a melodia de La mer, de Charles Trenet. Este contexto de world music resultou invulgarmente bem, com Dee Dee a fundir convincentemente os dois vocabulários. Em Ne me quitte pas, de Brel, a cantora extraiu-lhe todo a carga dramática, com um raro vibrato na voz. O arranjo em Mon homme, de Edith Piaf, foi novamente surpreendente, com Berthoumieux a tocar uma bulerias flamenca que imprevisivelmente se transformou em fandango.
De leque na mão, Bridgewater pairou sobre a música com extrema leveza. Girl talk, de Neal Hefti, foi a desculpa para uma encenação caracteristicamente afro-americana onde a soul e o funk serviram de palco para uma narrativa sobre sedução e sexo. Aqui, Dee Dee contou-nos em tom de rap os caminhos ínvios do desejo e do prazer que seguira na adolescência, deixando a assistência portuguesa possivelmente perplexa e, sem dúvida, sem reacção. No final, a cantora explicou que estes devaneios são admissíveis numa senhora que já passou a casa dos cinquenta.
A interpretação de Avec le temp, de Leo Ferré, foi um dos momentos mais belos e comoventes da noite. O tema foi aumentando em crescendo dramático, acabando por pôr a cantora a lacrimejar, obrigando-a a retirar-se temporariamente do palco. Em La vie en rose, Dee Dee solou com um trombone imaginário, reproduzindo com a voz uma gama significativa do vocabulário sonoro desse instrumento.
Ira Coleman destacou-se pouco enquanto solista, mas em La belle vie, de Broussolle, esteve particularmente bem em dueto com Bridgewater. Dedicaram uma versão extremamente lenta do tema a outra grande cantora: Betty Carter. No final da noite, Dee Dee Bridgewater tinha conquistado a sala através do seu talento invulgar, magnífica voz e uma capacidade de comunicação exclusiva dos grandes artistas. No segundo encore, numa rendição a capella do hino Amazing grace, a sua voz natural sobrepôs-se à amplificação, reverberando com nitidez em toda a sala. Com certeza que neste espaço ficou embebida a memória de uma grande noite de música.