"Não me sinto nada de especial"
Carlos Saleiro foi o primeiro bebé concebido por fertilização in vitro (FIV) em Portugal. Hoje faz 20 anos. É um homem bonito e envergonhado. E confessa que preferia ser conhecido pelos dotes futebolísticos que espera colocar ao serviço do Sporting Clube de Portugal (SCP). Se a sigla FIV não lhe diz nada, a sigla SCP diz tudo.
Por Andrea Cunha Freitas
Carlos Saleiro já é um homem. Cabelos pretos, olhos escuros e sorriso envergonhado. "Sou uma pessoa como outra qualquer", diz, fugindo ao assunto que o persegue como uma sombra há 20 anos. Carlos foi o primeiro bebé-proveta nascido em Portugal. O menino "milagre", como muitos lhe chamaram, cresceu. Mas, ao contrário do que diz, não é uma pessoa como outra qualquer. Afinal, como ele só há um reduzido lote de privilegiados. É um dos poucos futebolistas que tem contrato profissional com o Sporting.Nasceu em Lisboa, no dia 25 de Fevereiro de 1986 e, no dia seguinte, já era sócio do Sporting. Quando o ouvimos falar, a única coisa que soa a caso clínico é, seguramente, a sua paixão pelo clube que - investiguem os especialistas - parece ter conseguido pintar o seu coração às riscas verdes e brancas. Por essas e outras, Carlos preferia ser notícia pelos seus dotes profissionais.
"Sou envergonhado, sou simpático..." O tom de voz, os olhos que se desviam para o chão quando sorri e os gestos um pouco presos confirmam o auto-retrato. Não gosta de sair à noite, não fuma, não bebe. Os estudos ficaram pelo décimo ano mas é uma tarefa que pretende acabar. "Queria fazer o 12.º e depois um curso na área do desporto. Mas primeiro está o futebol."
Após quase duas décadas de silêncio, Carlos dispôs-se finalmente a enfrentar os jornalistas que insistentemente o desafiam a falar sobre o caso do "menino nascido em paredes de vidro."
"Os meus pais sempre me protegeram um bocado. Mas quando fiz 18 anos, "libertaram-me" para falar sobre isso. E eu, estou aqui, e falo." "Assim", diz - e repete ao longo da curta conversa -, "não me sinto nada de especial por causa disso." Aliás, não se sente mais nem menos do que os seus três irmãos. Um mais velho e dois (um rapaz e uma rapariga) mais novos, que foram concebidos sem a ajuda das novas técnicas de reprodução medicamente assistida.
Sobre o sucesso da FIV que o ajudou a nascer, diz: "Foi sorte. Na altura, três mulheres ficaram grávidas com estes testes, duas abortaram, a minha mãe não. E depois a minha mão até teve mais filhos."
Os jornais da época encheram páginas e páginas sobre o bebé Carlos. Falava-se no peso, no tamanho, no nome. Debaixo da asa protectora dos pais, nunca se chegou perto do bebé. Hoje, confessa que nem sabe o peso que tinha quando nasceu.
Os assuntos relacionados com as técnicas de reprodução assistida não parecem despertar-lhe o mínimo de curiosidade. "Sei que está agora a haver aí uma coisa por causa da FIV [o Governo pretende, após duas décadas de vazio legal, fazer aprovar uma lei sobre a reprodução assistida]. E sei que antes de mim já tinha sido uma... em Inglaterra", diz, referindo-se a Louise Brown.
Mas, ao contrário de Louise, que faz várias intervenções sobre este assunto - "ela é mais disposta a isso" -, Carlos está perfeitamente consciente de que hoje é um entre milhares de bebés-provetas que nasceram em Portugal nos últimos 20 anos. E repete: "É uma coisa normal. Não me sinto nada de especial."
Apesar de reconhecer que o seu caso serviu para que milhares de casais inférteis portugueses alimentassem com a expressão "é possível" a esperança de ser pais, o principal interesse de Carlos Saleiro é decididamente o futebol, e a conversa volta a ser driblada até lá. E, neste tema, as frases são mais soltas.
Tenta descrever a sensação "incrível" de ter sido campeão europeu na selecção nacional de sub-17, em 2003. Nota que este é o primeiro ano de sénior e lembra que "está emprestado" ao Olivais e Moscavide. "Espero voltar ao Sporting. É por aí que quero ser conhecido", afirma, deixando a decisão para o clube, onde começou a dar os primeiros passes há oito anos, numa quase vénia de respeito.
Mais do que a técnica que possibilitou o seu nascimento, Carlos admite que especial é o amigo que fez no primeiro dia de vida e que o acompanha até hoje. Como amigo, acima de tudo. É Pereira Coelho, o médico que, na altura, exercia no Hospital Santa Maria, responsável pela FIV de Carlos Saleiro.
Hoje, para festejar os 20 anos, Carlos organizou uma festa com os amigos mais próximos, a namorada e a família. A comemoração faz-se em casa com os que, independentemente de uma sigla como FIV, sentem e sabem que ele é especial. Especial por quem é e não pela forma que começou a ser. Parabéns Carlos Saleiro!