gisberto veio para portugal concretizar o sonho de ser mulher
No bilhete de identidade, lia-se Gisberto, de 45 anos, nascido em S. Paulo.
Na vida real, era Gisberta, transexual, das mais cobiçadas do Porto.
Nos últimos anos, a cocaína e a doença roubaram-lhe a vontade de viver.
Por Natália Faria(texto) e Adriano Miranda (foto)
Facto: chamava-se Gisberto, nasceu em 5 de Setembro de 1960, em S. Paulo, no Brasil. Facto: emigrou para Portugal em 1980, para dar corpo ao sonho de ser mulher - fez implantes mamários, mas não chegou a concretizar a mudança de sexo, porque a cocaína e a prostituição lhe travaram o passo. Facto: decidiu chamar-se Gisberta e ainda hoje lhe fazem a vontade - os amigos referem-se-lhe sempre no feminino. Ficou famosa nos palcos pelas imitações de Daniela Mercury, com quem, diz quem a conheceu, até era parecida fisicamente. Facto: acabou morta, supostamente às mãos de um grupo de 14 miúdos, o cadáver putrefacto arrancado de um poço com 15 metros de profundidade. "Era uma mulher calmíssima. Adorada por toda a gente", recorda Rute Bianca, transexual e parceira das muitas noites vividas em cabarés e boites. "Era uma mulher belíssima, profundamente dócil, com um discurso coerente, assertivo e muito informado. Nesse sentido, distinguia-se das outras prostitutas com quem trabalhamos", completa Raquel Moreira, psicóloga do Espaço Pessoa - uma instituição de apoio a prostitutas no Porto. Nos últimos anos, a psicóloga habituou-se a vê-la na Rua de Santa Catarina, à cata de clientes. "O aspecto físico degradou-se um bocado, mas mantinha a atitude maternal em relação às outras utentes", recorda ainda Raquel Moreira.
Mas isso era antes. Nos últimos meses, Gisberta - ou Gis, como era conhecida entre amigos e clientes - pouco corpo tinha para vender. "Estava completamente desestruturada, física e psicologicamente. Tinha-lhe sido diagnosticado HIV e a tuberculose estava num estado muito avançado. Tinha simplesmente perdido a vontade de viver", caracteriza Cristina Sousa, técnica da Abraço, que lhe perdeu o rasto em Dezembro do ano passado.
Por essa altura, o apartamento onde Gisberta chegou a viver, no centro do Porto, há muito ficara para trás. Isso era no tempo em que a transexual descontava como empregada de mesa na Bustus e era cobiçada pelos empresários do circuito travesti do Porto. "Quando veio o êxito do Feijão com Arroz, personalizava como ninguém a Daniela Mercury. Tinha o cabelo comprido como ela, sotaque, sabia dançar o samba, era comunicativa e alegre como ninguém." É ainda Rute Bianca que recua aos anos dourados.
Acabou ilegal no paísPercorramos a geografia dos seus dias por datas. Chegou a Portugal em 1980, numa altura em que os transformistas começam a efeminizar os corpos. Vinha munida de visto e trabalhou ao balcão de uma discoteca, ao mesmo tempo que saltou para os palcos. O que ganhava deu-lhe para arrendar um apartamento T0, na Travessa do Poço das Patas, onde vivia com dois cães, Carolina e Leonardo. "Eram tudo para ela, e quando os animais morreram, Gis começou a entrar em declínio", conta Rute Bianca. Por declínio entenda-se o consumo de cocaína, que a foi deixando mirrada - logo, com aparência imprópria para aparecer em palco. Foi aí que começou a prostituir-se. "Era a única maneira de arranjar dinheiro", desculpa-a Rute Bianca.
Por aqueles dias, era comum Gis bater à porta da Abraço, para acompanhar amigas. Esteve internada um mês no Hospital de Joaquim Urbano. Seguiu-se outro período na comunidade terapêutica O Lugar da Manhã, de Setúbal, de onde viria a fugir. Voltou à Abraço tempos depois. Só queria um emprego. Mas os vistos tinham caducado, pelo que se tornou imigrante ilegal. A Abraço participa o seu caso ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e à Delegação de Saúde. Cristina Santos, a técnica da Abraço, voltou a saber de Gis pelos jornais. Que noticiaram a sua morte. Gis faria 46 anos em Setembro.