Coisa nada ruim, o filme de Tiago Guedes e Frederico Serra
Se ao ver Coisa Ruim, de Tiago Guedes/Frederico Serra, o filme que hoje abre o Fantasporto, o espectador der por si a pensar no Shining, de Kubrick - os planos do carro a serpentear, com família dentro, em direcção, não a um hotel, mas a uma casa de aldeia perdida nas serras - ou em M. Night Shyamalan (A Vila), por causa de um paraíso perdido que, afinal, se transforma em pesadelo, os realizadores, ou o argumentista, Rodrigo Guedes de Carvalho, não negarão as influências. Nem precisam de o fazer por que assim estariam apenas a espantar fantasmas. Primeira longa-metragem de uma dupla que, vinda da publicidade, já apresentou trabalhos na área das curtas-metragens e dos telefilmes (passado que aqui está convenientemente sublimado), resolve a seu favor essas referências, faz seu o jogo de escondidas com as expectativas e clichés do "terror" - provoca mais arrepios do que sustos - e consegue construir, e fazer habitar, uma pequena peça atmosférica sobre um Portugal (re)inventado, uma ruralidade de brumas, bosques, superstições e lendas que já é mais ideal do que outra coisa. (Parêntesis para adiantar algo, sem excessivamente revelar, da narrativa: há aqui uma família, que, por vontade do pai - interpretado por Adriano Luz, de uma eficácia exemplar, como aliás todos os intérpretes -, abandona a cidade em direcção ao campo, para se purificar, mas esse mergulho em medos ancestrais vai fazer vir ao de cima ressentimentos e culpas bem presentes - filme de terror? não tanto, filme sobre as feridas familiares).
Onde Coisa Ruim ganha é na meticulosidade com que o filme é tricotado. Na capacidade de se deixar ensopar - como a paisagem húmida ensopa os planos - por um imaginário sem o usar apenas como gadget. No facto de fazer um décor ser "habitado": a casa abandonada, elemento mais do que decisivo em todos os filmes de terror, parece aqui decididamente vivida por "presenças", parece sobretudo vivida por personagens e intérpretes. Aqui se deve tirar o chapéu quer aos realizadores, por causa da direcção de actores, quer ao argumentista, que soube escutar os segredos de cada uma das personagens, não se contentando em fazer delas instrumentos do seu jogo. Coisa nada ruim esta.
Vasco Câmara