FRIDA KAHLO A grande ocultadora

Frida Kahlo, uma das pintoras mais famosas do século XX e que se tornou um ícone
das culturas minoritárias, vai ter a sua primeira exposição em Portugal. No final desta semana, o CCB inaugura Frida Kahlo, Vida e Obra com 26 pinturas e desenhos vindos de um museu mexicano. "Frida foi uma pintora brilhante e erudita. A sua arte é extremamente sofisticada",
diz uma das grandes especialistas internacionais de Frida Kahlo. A sua obra está muito
para além de ser uma autobiografia em pintura. Por Isabel Salema

As suas sobrancelhas unidas tornaram-se uma imagem de marca. Foi casada com o muralista Diego Rivera e amante de Trotski. Na Cidade do México ou em Nova Iorque vestia-se com um traje tradicional mexicano. Foi comunista. Pintora. Conheceu Picasso, Eisenstein e Marcel Duchamp, grandes nomes das vanguardas artísticas do século XX. Hollywood dedicou-lhe um filme biográfico em 2002. Hoje, Madonna é a sua maior coleccionadora particular. Por tudo isto, porque a vida tem ofuscado a obra, é difícil falar da pintura de Frida Kahlo, a quem o Centro Cultural de Belém (CCB) dedica uma exposição com obras da colecção Dolores Olmedo Patiño. A inauguração é na quinta-feira, às 22h, e abre ao público no dia seguinte.
Esta selecção já foi apresentada na Fundación Caixa Galicia, em Santiago de Compostela, e a maioria das obras integrou a espectacular exposição que a Tate Modern, em Londres, lhe dedicou no Verão passado. "Aqui estão 26 pinturas e desenhos, o que representa cerca de um terço das cerca de 80 obras apresentadas na Tate", diz Eugenia de Lara, do Museu Dolores Olmedo, na Cidade do México, que esteve em Lisboa para acompanhar a montagem. O museu mexicano, acrescenta, "tem a maior colecção de Fridas reunidas numa única instituição".

O contrário da pintora naif
Frida, que era a quinta filha de Guillermo Kahlo, um fotógrafo alemão, e a terceira filha da mestiça Matilde Calderón, nasceu a 6 de Julho de 1907. Hoje, é uma das pintoras mais famosas do século XX, tendo antecipado alguns dos temas que actualmente fazem parte do discurso artístico contemporâneo.
"Frida Kahlo era uma grande artista. O seu trabalho continua a ser muito relevante. A sua arte é extremamente sofisticada", diz a israelita Gannit Ankori, autora de várias obras sobre a artista mexicana, como Imaging Her Selves (Greenwood Press, 2002), afastando a ideia corrente de que se trata de uma artista espontânea que pinta tudo o que lhe passa pela cabeça. "Ela não é claramente uma artista naif. O seu trabalho é baseado em desenhos preparatórios, em fontes visuais e escritas diversas, cuidadosamente escolhidas. Uma análise mais próxima das suas pinturas revela que foi uma pintora brilhante e erudita", afirma Ankori, que é professora visitante da Universidade de Harvard e escreveu um dos ensaios do catálogo da exposição da Tate Modern.

A pequena mulher mexicanaKahlo é muitas vezes citada dizendo que "dois acidentes" deram forma à sua vida. O primeiro foi o desastre com um autocarro em que ia, aos 18 anos, que quase a matou e a deixou incapacitada para o resto da vida. "O segundo acidente foi Diego."
Num quadro pintado em 1931 em que Frida celebra o seu casamento (não está no CCB), a artista representa-se no papel da "pequena mulher de Rivera", diz a especialista. Rivera, o seu famoso marido artista, vinte anos mais velho e vinte centímetros mais alto, segura os atributos do pintor - a paleta e os pincéis. Plasticamente, explica Gannit Ankori, este retrato imita o estilo de um pintor amador, mas cita também, de uma forma menos óbvia, uma obra-prima da arte europeia, O Casamento de Arnolfini (1434), de Van Eyck. Noutras obras, há mais influências dos mestres antigos, como a de Botticelli ou a de Bosch. Mas Frida recusou o carimbo "surrealista" que lhe foi posto por André Breton quando visitou o México.
O interesse pelo trabalho de Frida coincidiu com o desenvolvimento do movimento feminista na história de arte, que enfatizou os aspectos autobiográficos e confessionais da sua obra.
Frida tornou-se uma espécie de ícone das minorias culturais. Nada melhor do que uma mulher que pintou um quadro com uma complexa representação do aborto. O mesmo aconteceu com os discursos pós-coloniais. Nada melhor do que uma mulher que posa como uma típica mexicana dentro e fora dos quadros. A culpada, no entanto, também é a própria Frida. Rivera chamava-lhe "a grande ocultadora".
As obras de Frida não são uma autobiografia em pintura, diz Gannit Ankori: "Ela cria obras de arte relacionadas com experiências humanas profundas, como o nascimento, a vida, o amor, a dor e a morte." Mas "ao escavar nas suas próprias experiências físicas e metafísicas, transformado-as em trabalhos artísticos poderosos, ensina-nos muito sobre o significado do Ser, não só sobre quem era Frida Kahlo".

A chorona e a pintora renascida
Para Ankori, apesar da relação tumultuosa com Rivera ter sem dúvida dado forma à sua vida, foi quando abandonou os papéis tradicionais de mulher e mãe que Frida se tornou na pintora inovadora que hoje conhecemos. Fundamentais para entender esta transformação são duas obras feitas no mesmo ano que estão no CCB: a litografia Frida Kahlo e o Aborto e o óleo Hospital Henry Ford, ambas de 1932, sobre o aborto espontâneo que sofreu num hospital em Detroit, quando acompanhava o trabalho do marido nos EUA.
No Henry Ford Hospital, Frida escolhe representar-se como La Llorona (A Chorona), uma figura que no folclore mexicano é o arquétipo da "mulher diabólica", o oposto da mulher-mãe. Por isso, o quadro não é só um relato biográfico do seu aborto, mas uma inovação na iconografia da mulher, pintando tabus como o sangue uterino. É construído, deliberadamente, como uma cena anti-Natividade, onde figura o feto abortado, entre imagens médicas de uma frieza e rigor perturbantes.
Na litografia, onde está igualmente desenhado o feto abortado, Frida auto-representa-se segurando a mesma paleta que Rivera empunhara no retrato feito depois do casamento. Apesar de não ser fértil, ela é uma entidade produtiva, sublinha Gannit Ankori.
Depois deste renascimento simbólico como artista, a primeira pintura que Frida Kahlo completa intitula-se O Meu Nascimento, também pintado em 1932, um quadro que pertence à cantora norte-americana Madonna. Para Ankori, simboliza uma rejeição radical de todas as convenções artísticas de representação do corpo feminino em geral e do corpo da mãe em particular. No centro da imagem está a vagina de uma mulher, vista de uma perspectiva obstétrica, de onde sai a cabeça de Frida - no lado oposto, sobre a cama, um retrato da Virgem.

A chingadaO ano de 1932 é considerado pivot no desenvolvimento da arte de Frida. "Antes de 1932, Frida Kahlo mostrava-se nos papéis femininos tradicionais. No Henry Ford Hospital retrata-se de uma forma totalmente diferente. Depois de pintar este trabalho, ela começa a explorar outros papéis não tradicionais."
É depois de se representar como La Llorona que começam a aparecer na sua obra muitas identidades alternativas.
A chingada é uma delas, aparecendo em pinturas como Umas Quantas Facaditas (1935) ou A Coluna Partida (1944). Estar ou ser chingada significa estar ferida, partida, rasgada, ser enganada. Tem origem no verbo para violação ou penetração sexual. É o estado supremo da vítima, que perde a identidade. Evoca também o domínio da Europa sobre a cultura indígena mexicana.
Umas Quantas Facaditas "é um quadro de muita paixão, sangue e infidelidade", comenta Eugenia de Lara, do Museu Dolores Olmedo. A pintura representa a dor e o sentimento de traição que Frida sentiu quando descobriu que Diego tinha uma relação amorosa com a sua irmã mais nova Cristina.
Mas A Coluna Partida - que tem também referências à figura de Cristo e aos coletes ortopédicos que tinha de usar - é para Eugenia de Lara a pintura mais importante da colecção, onde se percebe "a dor e o sofrimento" da artista, "numa obra que comove o espectador".

Frida andrógenaUma das identidades subversivas apontadas por Gannit Ankori é o seu self andrógeno, que aparentemente esconde a sua ambiguidade sexual. Auto-Retrato com Cabelo Cortado, que faz parte da colecção do MoMA, terá a ver com esta ambiguidade, tendo sido pintado na altura do divórcio com Rivera.
Mas Frida também se representou como uma freira, como um animal ou como uma deusa hindu, etc. Em Auto-Retrato com Pequeno Macaco, Frida pinta-se com um traje indiano, numa das muitas obras em que promove a "mexicanidade", querida à Revolução Mexicana (1910-20), olhando para o passado pré-colombiano. Fora e dentro da tela, como também se vê nas cópias das suas roupas na exposição, Frida gostava particularmente de se vestir com os trajes de tehuana, no que se tornou numa garrida imagem icónica da pintora.
As suas três máscaras principais são, segundo a investigação de Gannit Ankori, "a pequena mulher de Rivera", "a exuberante mulher mexicana" e "a pintora naif e espontânea". "Debaixo desta tripla fachada, há muitas imagens artísticas diferentes, às vezes vários self em conflito."

Frida Kahlo. Vida e ObraLisboa CCB. De 24 de Fevereiro a 21 de Maio. De 3ª a dom. das 10h às 19h.

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