Um romance escrito nas estrelas

O que está no filme de James Mangold, realizador interessante mas desequilibrado capaz do melhor e do pior, para quem este projecto foi um "labour of love" que levou anos a montar, não é esse percurso de sobrevivente que se soube manter relevante durante meio século: é tão somente a história da paixão de Cash e da sua segunda esposa, June Carter, filha de uma lendária dinastia da música country, contada com os requintes melodramáticos de que Hollywood é capaz, disfarçada de "ascensão e queda" do músico desde o início da sua carreira nos estúdios Sun, sob os auspícios do produtor Sam Phillips, até à sua ressurreição em finais da década de 60 com o disco gravado ao vivo na prisão de Folsom.

"Walk the Line" é apenas parte da história de Cash, e a parte que Hollywood acharia (claro) mais interessante: a sua infância difícil como filho de um fazendeiro pobre que o rejeitou após a morte acidental do irmão mais velho, a sua subida a pulso nos tempos áureos do rock"n"roll em plena década de 50, o modo como se apaixonou na estrada por June Carter e, apesar de já estar casado e ter filhos, nela compreendeu logo ter descoberto a mulher da sua vida e a perseguiu até ela o aceitar como esposo. Um romance escrito nas estrelas.

Já o sabíamos de outros filmes sobre estrelas da country como Loretta Lynn ("A Filha do Mineiro", de Michael Apted, com Sissy Spacek e Tommy Lee Jones) ou Patsy Cline ("Sweet Dreams", de Karel Reisz, com Jessica Lange e Ed Harris): a música country é terreno propício ao melodrama clássico, com o seu apego aos valores tradicionais da família, o cenário rural e a subida a pulso que é apanágio das edificantes histórias de ascensão ao estrelato. Se quisermos, podemos ler aí uma "pureza" original, primordial, da família nuclear que parece feita à medida do conflito clássico do melodrama, entre a razão e a emoção. E, apesar das personagens que o inspiraram serem personalidades identificadas como "rebeldes" no universo da country, "Walk the Line" é do mais clássico que se pode imaginar no melodrama: são as mesmas histórias de um amor não correspondido, de um romance cheio de obstáculos, de um coração indomável que se busca sempre noutro sítio. O título do filme (que, inteligentemente, ficou por traduzir em português) é, a esse aspecto, programático - por ser não só um dos temas clássicos do músico, mas também o símbolo daquilo que June pedia a Johnny para que ele fosse capaz de merecê-la: "walk the line", "não pises o risco", "porta-te bem". Porque só no respeito dos valores tradicionais e da "santidade" da família nuclear a sua relação que começara fora dela podia fazer sentido, só assim as feridas de Cash podiam sarar.

Mas o problema é que é nessa ferida, nessa escuridão que Cash via, que reside a intensidade, a energia da sua obra. Aquilo que nos atrai em Cash não é apenas o melodrama "larger than life" mas verídico do artista torturado, que existiu realmente (a proposta de casamento que Cash faz em palco, que parece invenção de argumentista, é absolutamente verdadeira) - o músico era um homem com um lado negro, escuro, uma atracção pelo abismo e pela tragédia humana que foi aquilo que fez a sua música ressoar com os prisioneiros de Folsom e San Quentin, que os fez identificar-se com as palavras que aquele homem cantava, com a esperança de redenção e a certeza do castigo aprendidos nos velhos hinos religiosos que moldaram o seu gosto (e o de June) pela música desde criança. Seria possível, por exemplo, pensar na sua leitura de "Hurt" dos Nine Inch Nails sem compreender esse lado negro de quem ganhou e perdeu, gozou e sofreu, em suma, viveu, que tantas vezes vinha ao de cima na música de Cash? E é esse lado negro que não se sente em "Walk the Line"; é esse lado negro que fica por explorar, reduzido aos motivos demasiado fáceis da dor do filho rejeitado e do marido incompreendido, ao alívio da droga e do álcool e das mulheres fáceis, à caricatura do artista do sucesso auto-destrutivo.

Nada de confusões, contudo; o filme de James Mangold não é um "branqueamento" da imagem de Cash - não escamoteia a sua tendência auto-destrutiva, nem trata mal (ao contrário do que uma das filhas do primeiro casamento pretende) Vivian, a primeira esposa, pintada não como uma harpia mas apenas como uma mulher que queria apenas de Cash aquilo que ele não lhe podia dar sob pena de deixar de ser quem era. O casal Cash e Carter esteve envolvido no projecto e o guião final, apesar de completado já depois do falecimento do casal, surgiu de longas conversas entre eles e o realizador respeita as suas vontades. "Walk the Line" não branqueia, mas opta pela história edificante do romance com final feliz, a história das muitas que a vida de Cash sugeriria que faria sentido contar de acordo com os padrões de Hollywood.

Há certamente honestidade em "Walk the Line". Nem podia ser de outro modo, face ao investimento e à entrega que se sente da parte da equipa e dos actores (que, sob a orientação do veterano produtor T-Bone Burnett, gravaram eles próprios as canções que interpretam - nada do que aqui se ouve é "playback" ou gravações originais de Cash e Carter, antes "fac-similes" de impressionante semelhança cantados pelos actores). E o filme acaba por pertencer mais a Reese Witherspoon, que consegue, com uma personagem à partida mais difícil, fazer esquecer a sua imagem de actriz de comédia e colocar à nossa frente June Carter de corpo inteiro, roubando o holofote a um Joaquin Phoenix extraordinário no mimetismo da fisicalidade e da energia de Cash; mas incapaz de nos fazer esquecer o actor por trás da personagem. Há honestidade, escorreiteza, eficácia, há um melodrama bem feito sobre um cantor de sucesso. Mas esta não é toda a historia do Homem de Negro.

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