A nossa preguiça impede o desenvolvimento do país
Recentemente agraciada com os prémios Universidade de Coimbra 2006 e de Ensaio Jacinto Prado Coelho, a professora Maria Helena Rocha Pereira revela o olhar da especialista em Antiguidade
Clássica sobre o mundo que a rodeia. Uma visão bastante crítica de uma mulher que "detesta" política, mas que, ao mesmo tempo, se mostra esperançosa. Por Aníbal Rodrigues
Maria Helena da Rocha Pereira (Porto, 1925) é uma estudiosa da cultura clássica, grega e romana, tema a que dedicou uma longa carreira docente na Universidade de Coimbra. Hélade - Antologia da Cultura Grega (1959) e Temas Clássicos na Poesia Portuguesa (1972) são apenas dois títulos da vasta bibliografia que tem dedicado ao tema.PÚBLICO - Como é que analisa o actual contexto europeu?
Maria Helena da Rocha Pereira - Os historiadores insistem que a história não se repete, mas a verdade é que está sempre a repetir-se. Já houve no passado tentativas para a Europa se tornar continente, tivemos na história várias tentativas violentas. Esta agora tem sido - à superfície - feita pacificamente, mas na verdade, de repente, aparecem votações negativas ao acordo da União. Espero que seja possível superá-las.
Mas se a história se repete, tal não será possível...
Agora não é à força, e as tentativas do passado eram à força - e não pequena. Tenho esperança que a União Europeia resulte. E isso agrada-me muito, porque a Europa tem, de facto, raízes comuns que se foram estendendo pela superfície toda do Continente e seria uma pena que a Europa não fosse outra vez na frente do progresso mundial.
Mas uma Europa que, apesar de tudo, foi sempre funcionando, tem mesmo que se unificar?
Funcionando mal. Quando nasci, já tinha sido a I Grande Guerra, mas estava toda a gente à espera da segunda, e realmente foi. Portanto, a desejável - e espero que possível - harmonia entre os vários países europeus deve ser uma finalidade pela qual devemos todos lutar.
Tem-se falado muito da crise no nosso país. Significa apenas mais um ciclo histórico?
Sim. Lembro-me sempre de um exemplo que consola um bocado: a chamada Geração de 70, geração cultural e literária à volta de 1870. Quem ler os livros e cartas deles - e eram os maiores escritores portugueses da época - verifica que eles viviam numa desolação! Isso foi a sede de conflitos e de mudanças de paradigma civilizacional, que se manifestou muito naquela altura, nos últimos decénios da monarquia. Era uma situação de desânimo. Isso faz-me lembrar o que sucede hoje. Verifico que com os melhores pensadores, aqueles que não estão enfeudados a partidos políticos mas que observam e meditam sobre o que se passa, é muito semelhante. Isso dá-me alguma esperança de que a situação é susceptível de melhorar, porque quem ler aqueles autores julga que está próximo o apocalipse no nosso país. Também aquele grupo, os chamados Vencidos da Vida, ao lê-los temos uma impressão desoladora. Felizmente conhecemos que o país sobreviveu a tudo isso. De maneira que tenho alguma esperança.
Reconhece, portanto, alguma evolução...
Sim, tem havido, mas com oscilações, com uma falta de preparação para a cidadania.
É esse o nosso problema principal?
Em grande parte e com os seus reflexos económicos. Falta - como hei-de chamar? - a tendência para trabalhar para nós e para todos. Isto é, para a melhoria de todo o país e não apenas para a nossa própria. A aplicação ao trabalho infelizmente é muito deficitária no nosso país. Estou a dar outro nome àquilo que vulgarmente se chama preguiça. A nossa preguiça impede o desenvolvimento do país.
E como é que se muda isso?
É muito difícil, diz-se que é congénito. Ao ler-se as cartas do grande humanista flamengo Leonardo, que esteve aqui no século XVI, quando ele desabafa com os amigos da Europa do Norte, ele não é sistematicamente contra nós, de maneira nenhuma - de resto, foi muito bem tratado até como preceptor de príncipes da casa real -, mas ele aponta certas faltas ao povo português. É o caso do gosto pelo exibicionismo ou a repugnância das altas classes pelo trabalho, que parece que são de hoje.
Então e os emigrantes lusos que tanto contribuem para a glória dos países mais desenvolvidos?
Isso é porque vão os melhores (risos). Em muitos casos, não é? Também há maus. Mas, os que vão, na maioria, realmente fazem um bom trabalho e são estimados.
A preguiça sobrepõe-se ao crónico défice educacional?
Digamos que é um aspecto dele. No fundo, tudo se conjuga para dar maus resultados. Repare-se que há muitas pessoas que dizem que não encontram emprego - há casos em que é assim, mas há outros em que só querem empregos muito bem remunerados e com pouco trabalho. Compare-se com o exemplo dos ucranianos que fogem para aqui e que, por vezes, têm graus universitários e aceitam qualquer espécie de trabalho. Isso não está na nossa mentalidade, de um modo geral. Tudo isto são impressões gerais de uma pessoa que não é política de carreira. Pior do que isso, que detesta a política.
Detesta?
Tenho dito esta frase muitas vezes: a política seria a mais nobre das artes, como diz Platão, mas na verdade não é. A política acaba quase sempre num jogo de interesses.
Mas, na essência, é algo nobre...
É algo extremamente nobre querer ajudar a sociedade em que se vive, ajudar a orientá-la no bom caminho, tudo isso é magnífico. Mas, geralmente, não é o que acontece.
É, portanto, difícil alterar o que somos?
Penso que sim, mas tenho sempre alguma esperança. No entanto, há aspectos em que as mentalidades mudaram para melhor. Por exemplo, já quase não existem aqueles preconceitos de classe social, que existiam quando eu era pequena. Felizmente, já não se notam.
E em termos de costumes?
Aqui só posso dizer uma coisa tremenda. As características da civilização actual - e não é só a nossa - fazem lembrar o tipo de falta de ética que havia na decadência do Império Romano.
É uma constatação tremenda...
Em muitos aspectos é. Com isto só quero dizer que quando há a perda dos valores éticos que suportam uma sociedade, o caminho não é para a melhoria. Pelo contrário.
A continuação do estudo e do interesse pela antiguidade clássica estão garantidos por muitos e bons anos?
Espero que estejam, no sentido que temos um grupo, quer em Coimbra, quer em Lisboa, de classicistas de grande qualidade. A verdade é que tudo vem da cultura clássica. É preciso não esquecer que a ciência actual assenta na ciência grega, principalmente, e também a própria teoria política parte da antiguidade grega e depois tem acrescentos - digamos assim - da antiguidade romana.