O turbante de Maomé
Para lá da tempestade no mundo muçulmano, as caricaturas de Maomé são um assunto europeu, nosso. Em nome da liberdade de expressão, o jornal conservador dinamarquês Jyllands-Posten quis testar a resistência do islão à "blasfémia". Além de casos de mau gosto - apreciação subjectiva - os cartoons associam directa ou subliminarmente o profeta ao terrorismo. É legítimo? Uma parte dos editorialistas europeus defende o "direito à blafémia" como parte integrante da liberdade de expressão, que não pode ter limites senão na lei e no recurso aos tribunais. Excelente.
Amálgama racistaA Europa não tem de obedecer ao interdito muçulmano de representar o Profeta ou Allah. É uma questão teológica que não diz respeito ao mundo cristão. É outra a "nossa" questão: o insulto a uma comunidade religiosa ou civilizacional. "É difícil acreditar que os directores de um diário europeu não tenham sofisticação intelectual e cultura histórica para perceber que desenhar o Profeta como terrorista constitui um insulto maior", escreve o Jordan Times.
Esta mesma amálgama é feita, após o 11 de Setembro, por pregadores evangélicos americanos de extrema-direita, como Pat Robertson. Não é colocada a bomba no turbante dum chefe do Hamas, mas no do Profeta. Por isso todos os muçulmanos são visados - obscurantistas ou terroristas. O racismo começa aqui.
O direito à sátira "termina no ponto em que se torna provocação ou desprezo do outro", lembra o grande rabino de França, Joseph Sitruk. E, acrescenta Kofi Annan, deve respeitar a religião, um domínio explosivo.
Eis a primeira hipocrisia do Jyllands-Posten: se tivesse testado a comunidade judaica com idêntica provocação, mostrando por exemplo Moisés a maltratar um palestiniano, seria imediata e universalmente condenado por anti-semitismo. Os judeus têm "tolerância zero" nesta matéria.
A segunda hipocrisia é social: as sociedades ditas multiculturais do Norte da Europa pouco se incomodam com o facto de parte dos seus cidadãos ou imigrantes muçulmanos não cumprirem algumas leis básicas dos Estados em que vivem. É uma versão prática e racista da "tolerância".
Hipocrisia árabeQue aconteceu? Imãs, ulemas e grupos islamistas radicais recuperaram o tema. A União Internacional dos Ulemas Muçulmanos apelou ao boicote dos produtos dinamarqueses e noruegueses. Outros ameaçam os militares dinamarqueses no Iraque. Os governos foram forçados a seguir o apelo da "rua árabe". A Arábia Saudita chamou o seu embaixador em Copenhaga e lidera a "indignação" dos crentes.
"Estas caricaturas são islamófobas. Elas dividem as pessoas e apenas consolidam os muçulmanos mais radicais", declara à AFP o analista árabe Malek Chebel. É isto, e apenas isto, o que os europeus devem reconhecer e denunciar. De resto, diz Chebel, a reacção dos dirigentes árabes é "hipócrita" e visa dissimular a sua própria "torpeza".
O mesmo se diga dos islamistas. Um dos mais virulentos denunciadores "da canalha que insulta o Profeta Maomé na Dinamarca" é o chefe do Hezbollah libanês, Hassan Nasrallah. Ora, a sua televisão, Al-Manar, notabiliza-se pelo mais execrável racismo, figurando os judeus com focinho de porco.
Há igualmente muçulmanos corajosos, como Jihad Momani, que publicou três dos cartoons no jornal al-Shihan, de Amã, para que os muçulmanos tenham noção da dimensão do caso. Pergunta em editorial: "Que fere mais o islão, estas caricaturas ou as imagens de um raptor de reféns que degola as vítimas perante as câmaras, ou ainda um kamikaze que se faz explodir durante um casamento em Amã?"
A 6 de Janeiro, o primeiro-ministro dinamarquês, Anders Rasmussen, teve de escrever à Liga Árabe dizendo que não podia interferir na liberdade de expressão, mas condenando "qualquer acção ou palavra que tentem diablilizar certos grupos em função da sua religião ou pertença étnica". Hoje, os dinamarqueses têm medo e perdem dinheiro. Esperemos que evitem o pior e não se ajoelhem perante os islamistas.
IrresponsabilidadeTer moral para discutir com o islão exige que a Europa seja exemplar na sua crítica. Mas está algo doente. Tem tentado resolver a questão das opiniões "racistas" ou "negacionistas" por uma indefinida criminalização, que leva a casos absurdos, como o do orientalista Bernard Lewis, há anos simbolicamente condenado por um tribunal francês por pôr em causa a qualificação do massacre dos curdos em 1916 como genocídio.
O problema é outro. Cada vez mais os europeus conhecem direitos e ignoram a ética da responsabilidade, que manda pensar na consequência dos nossos actos, mesmo quando usamos as mais fundamentais liberdades.
O Jyllands-Posten quis educar os "seus" muçulmanos na liberdade de expressão. Prestou um serviço ao pior islamismo. Porque ele próprio foi, sem o saber, profundamente islamófobo.