Falsificação de vinho do Porto e fraude fiscal julgadas em Lamego
Se a acusação de associação criminosa cair,
o Estado fica lesado numa fraude fiscal de 3,5 milhões
de euros
O megaprocesso de falsificação de vinho do Porto, cujo julgamento decorre desde o passado dia 10 de Janeiro num pavilhão desportivo em Lamego, nasceu de um outro processo gigantesco de fraude fiscal, que foi julgado em Ovar entre 2002 e 2003 e que aguarda ainda decisão do Tribunal da Relação do Porto, devido a diversos recursos apresentados. Ficou conhecido como Caso Uniarme e é uma das maiores fraudes fiscais até agora descobertas em Portugal: o acórdão ainda não transitou em julgado, mas a decisão em primeira instância, corroborada pelo Tribunal da Relação, deu como provado que o Estado ficou lesado em mais de 50 milhões de euros (10 milhões de contos) na comercialização de bebidas alcoólicas sem o pagamento das respectivas alcavalas fiscais.O processo iniciou-se em Novembro de 1999, na sequência de uma operação da Brigada Fiscal da GNR num armazém da Uniarme (uma das maiores centrais de compras portuguesas), em Esmoriz, que revelou 400 mil garrafas de bebidas brancas sem documentação. Esta apreensão fez emergir a ponta do "iceberg" de uma gigantesca fraude aduaneira que envolvia uma rede de importantes empresas distribuídas pelo país.
Segundo o acórdão, a fraude começou em 1997 e consistia na apropriação do IVA (imposto sobre o valor acrescentado) devido ao Estado, através da simulação de transacções intracomunitárias de mercadorias diversas e da emissão de facturas em cascata a que não estava subjacente qualquer mercadoria. Essa fraude visava também a apropriação ilegítima do Imposto Especial sobre o Consumo (IEC), cobrado por entrepostos fiscais fictícios ou constituídos em nome de pessoas sem património ou com identidade falsa.
Foi no desenvolvimento deste processo que, além das bebidas brancas, os investigadores detectaram fornecimentos de vinhos do Porto sem facturas com origem nas empresas geridas por Manuel Pedro Marta, o principal arguido do megajulgamento que decorre actualmente em Lamego. Decidiram então extrair uma certidão do caso Uniarme e desenvolver um inquérito à parte "para investigar tudo, desde a produção dos vinhos generosos até à sua comercialização", conta Carlos Guimarães, advogado em ambos os casos.
Processos complexosO processo de Lamego, um dos maiores casos de falsificação de vinhos generosos de sempre, tem em muitos aspectos contornos semelhantes ao megaprocesso que lhe deu origem. Desde logo, o número de arguidos que envolvem: no banco dos réus, em Lamego, sentam-se 100 arguidos, 63 em nome individual, 37 empresas; em Ovar sentaram-se 137 arguidos, dos quais 81 em nome individual e 56 em representação de empresas.
As duas investigações foram desenvolvidas pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal e os principais arguidos foram acusados de associação criminosa para fraude fiscal. Os números relativos à evasão fiscal são no entanto substancialmente diferentes: no primeiro caso, o prejuízo para Estado foi estimado numa verba superior a 50 milhões de euros, no segundo, de 3,5 milhões de euros.
No caso Uniarme, apenas a fraude fiscal foi dada como provada, o que resultou em 44 condenações individuais (três condenações a cinco anos de prisão foram as penas máximas) e 42 condenações a empresas (multas que variam entre os cinco mil e os 300 mil euros). A central de compras que deu o nome ao processo acabou por não ser condenada por não terem sido provadas as irregularidades de que era acusada.
A absolvição da acusação de associação criminosa não surpreende quem lida com estes casos. "Estes processos são muito complexos e o complexo tende a diluir-se, a perder-se pelo caminho", admite João Alberto Loureiro, procurador no megaprocesso de Lamego. Contudo, se este tiver o mesmo desenlace que o de Ovar, se a acusação de associação criminosa cair, fica uma fraude fiscal de 3,5 milhões de euros, punível com uma pena prisão até cinco anos.
Para permitir a sua realização, a Direcção-Geral de Administração da Justiça andou alguns meses à procura de um local apropriado (ver caixa), o tribunal destacou para o caso uma juíza em regime de exclusividade e cada sessão do julgamento envolve um aparatoso dispositivo policial. Acresce ainda o facto de até ao fim do julgamento, cerca de 70 advogados e outros tantos arguidos - muitos de Lisboa - terem que se deslocar a Lamego dois ou três dias por semana.
"Luta contra fraude fiscal passou a ser moda"Diversos advogados contactados pelo PÚBLICO consideram que este megaprocesso está demasiado "empolado". "É tudo folclore. De vez em quando, alguém se lembra de empolar uma situação que depois descamba e dá em nada ou muito pouco", assevera Abel de Andrade, advogado do principal arguido deste caso, que esteve também na defesa do Caso Moderna.
"A luta contra a fraude e evasão fiscal passou a ser moda", concorda Carlos Guimarães. Na sua opinião, o empolamento destes casos tem no entanto um efeito psicológico positivo no campo da prevenção geral: "As pessoas passam a ter medo de correr o risco da evasão fiscal." E não é para menos: no megaprocesso de Lamego, 36 arguidos respondem apenas por contra-ordenações, alguns deles por alegadamente terem comprado sem factura apenas escassas garrafas de vinhos do Porto a intermediários de Manuel Pedro Marta.
Quase todos já foram dispensados de assistir às sessões de julgamento, mas mesmo assim os seus advogados têm que estar presentes em todas, o que não lhes ficará barato. E, segundo a acusação, alguns causaram prejuízos ao Estado inferiores a 1000 euros.