O Brasil de oitocentos visto por olhares estrangeiros
Vinda da Colecção Brasiliana, depois
de ter sido apresentada
em Paris, a mostra que hoje é inaugurada no Porto reconstitui a descoberta
das terras tropicais
por viajantes europeus
Foram vários os viajantes que, movidos pela curiosidade ou pelo deslumbramento, registaram o Brasil oitocentista em desenhos, gravuras e pinturas. Eram não só artistas, mas também militares, cientistas, diplomatas e naturalistas. Este olhar estrangeiro sobre as terras tropicais está condensado na exposição Artistas Viajantes e o Brasil no Século XIX, que amanhã abre ao público no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto. A mostra deste acervo da Colecção Brasiliana/Fundação Estudar, pela primeira vez exposto em Portugal, é inaugurada hoje, às 18h, com a presença da ministra da Cultura.Os comissários brasileiros Carlos Martins e Valéria Piccoli seleccionaram 122 obras, a partir de um espólio com mais de 300 peças, para narrar em três capítulos a descoberta de um território. Uma descoberta em tempo gerúndio, que não se traduz em chegar primeiro e ser referido na historiografia, mas sim em esquadrinhar os acidentes da paisagem, documentar o rendilhado de folhas e espécies vegetais ou então representar corpos negros ou índios. Encontra-se desde um extremo rigor na descrição de cenas, paisagens e embarcações, por exemplo, até alguma efabulação de cenários improváveis.
Uma tela a óleo de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), por exemplo, mostra o Pão de Açúcar a uma distância inverosímil do morro do Corcovado. "Fui a Niterói e procurei por todo lado um ângulo que permitisse essa visão das duas colinas. Descobri que esta relação simplesmente não existe", diz Carlos Martins ao PÚBLICO, durante uma visita guiada. Um detalhe que, acrescenta, não retira mérito algum ao quadro Revistas das tropas destinadas a Montevideu na Praia Grande (1816). Ali está o olhar de Debret para um momento de lazer da família real, cena que pretendia contextualizar no Rio de Janeiro. E assim o fez.
O Rio de Janeiro e a Corte é o primeiro dos três módulos. O mote é a chegada de D João VI ao Brasil e, logo à entrada, deparamo-nos com os retratos de dois rivais. À esquerda do umbral está D. Pedro, Duque de Bragança (pintura posterior a 1834, autor não identificado), ao passo que no lado oposto está D. Miguel, uma contribuição do próprio Museu Soares dos Reis para esta exposição. Seguem-se retratos da aristocracia, cenas da urbe oitocentista e uma espécie de inventário de tipos de escravos brasileiros. Todos os negros retratados estão descalços, mas cada um deles enverga um tipo de indumentária ou instrumento, provavelmente associada às diferentes funções que desempenhavam. Valéria Piccoli explica que os exemplares desta série recordam "cromos", dada a pequenez das imagens e o instinto de colecção que desperta naqueles que as possuem. As aguarelas expostas, executadas a partir de modelos criados por Joaquim Cândido Guillobel, são da autoria do militar inglês (e pintor amador) Henry Chamberlain e foram executadas na segunda década do século XIX.
"Toda representação da natureza é cultural", conclui o comissário. Quer isso dizer que, na sua opinião, cada obra ali exposta não é o Brasil apenas, mas uma amálgama daquilo que o seu autor viu em terras tropicais e da bagagem que trouxe às costas. Uma ideia que ganha consistência nos outros dois núcleos da mostra, intitulados O Registo dos Viajantes e A Paisagem Brasileira.
A série de cinco litografias do artista alemão Karl Robert von Planitz (1808-1847), por exemplo, comporta um olhar "profissional" do Rio de Janeiro. "O requinte de detalhes é quase fotográfico", nota o comissário, ao passo que as seis pinturas na parede contígua são "representações afectivas" de um amador suíço não identificado. Num registo, é possível imaginar um plano director municipal sobre o tecido urbano que ali ainda está a nascer, noutro, encontramos um desejo de prolongar uma estadia aprisionada no tempo, de impedir a erosão da memória.
Patente no Porto até ao próximo dia 16 de Abril, esta exposição foi montada a pretexto das comemorações do Ano do Brasil em França, em 2005. Mais de vinte mil espectadores acorreram ao Musée de la Vie Romantique ao longo dos cinco meses em que a mostra esteve em cartaz na sala parisiense.