Cultura: o choque teatral
A solução chama-se reforma do sector público do teatro, dos teatros nacionais e privados com práticas artísticas de interesse público comprovado. Essa nova realidade agiria sobre todo o teatro, criando formas de integração profissional e viabilizando projectos.
Acultura, nas suas acepções dinâmicas, de criação, património e consciência, são representações do mundo que permitem a individuação dos sujeitos humanos. A qualificação da vida portuguesa traduz-se na qualificação individual dos cidadãos. A democracia, sem uma componente cultural, é deficitária, exclui os cidadãos de um direito constitucional à fruição, conhecimento patrimonial e criação cultural.Vem isto a propósito de uma política teatral, arte milenar e pluridisciplinar, fundo de esperança na alteração do caminho de sentido totalitário que as actuais "sociedades de controlo" e que a demissão de António Lagarto parece recolocar na ordem do dia. Não é por acaso o teatro a vítima escolhida.
Teatro, arquétipo democráticoA potência do teatro reside no seu arquétipo: uns diante de outros, partilhando entre iguais uma ficção. É um arquétipo democrático, um lugar de polémica sem espaço à demagogia que materializa uma relação vital entre raciocínio emocional e emoção raciocinada. A presença simultânea de espectadores e actores confere-lhe uma natureza não-mítica. Proximidade e complexidade fazem do teatro, apostado na decifração de enigmas e no debate dos problemas da "cidade", a arte não-instrumental por excelência. A chegada ao Dona Maria de uma hipotética via manipuladora da cultura teatral e populista, a verificar-se, será apenas mais um passo na regressão cultural em marcha. Mas o teatro é uma cultura fundadora das bases civilizacionais do mundo, não vai atrás do fácil (por vezes hibernando mesmo): os mitos gregos já problematizavam toda a nossa existência, como dizia Muller. Em As Aves, Aristófanes estigmatiza a relação da velha política com a corrupção. Recentemente, Luca Ronconi, o actual director do Piccolo Teatro de Milão, viu a sua Paz proibida por Silvio Berlusconi.
Estas características do teatro não têm servido as "políticas" mais recentes, apostadas em formas dóceis, parateatrais, high-tech e manipuláveis, e no êxito popular mediático. O teatro é rebelde, não se ajeita ao "pronto a inovar" que deifica o efémero e faz tábua rasa do passado. E os problemas, agora que o copo de água parece transbordar, são muitos e extravasam a questão do D. Maria.
O eterno recomeçoO que tem feito o Ministério da Cultura de Isabel Pires de Lima? Correr atrás de fogos que ele próprio ateia. A cega tutela das Finanças nega-o como ministério autónomo e a falta de uma estratégia para este tempo de vacas magras agrava o caso. Nenhum projecto público tem tido continuidade. Retrocesso é a palavra; a cultura passou para mínimos existenciais. O que é que observamos na prática deste ministério?
1. A valorização do pontual em desfavor de projectos estruturantes ("excitação" bienalista de São Paulo e Veneza/ausência de programa nacional para os cineteatros recuperados; inexistência de uma articulação com a Educação em matéria de Ensino das Artes).
2. Descoordenação na gestão do Instituto das Artes (IA), com o sistemático desrespeito por prazos legais (pense-se na desnecessária tragicomédia causada ao Norte pela famosa providência cautelar e em subvenções atribuídas, no destino, nove meses depois da data legal).
3. Que nada se ergueu de contínuo e prospectivo na "política" de internacionalização. O que foi feito que possa ser inscrito no médio ou no longo prazo?
4. Que não se travou uma política de "localização" do teatro, sem visão nacional e não apostada num lento magistério de influência junto das autarquias, o que contribuiu para a sua provincianização.
5. Constante confusão entre esfera pública e privada. Grave foi verificá-lo nas consequências de opções administrativas em matéria de gosto.
6. Que na decisão de subvenções, os júris nomeados e a metodologia de análise dos projectos das companhias excluem o conhecimento real das práticas destas, a sua inserção local e as condições concretas de criação. Fora de Lisboa, o desconhecimento das companhias é quase total.
Em síntese: a orientação deste ministério marcou uma opção pelo epifenómeno e um desinteresse pelo que é estruturante. Nada aconteceu em relação aos repertórios, aos autores, às questões da formação, da escrita, dos espaços e equipamentos, da profissionalização, dos públicos, das digressões.
Que fazer?Há um conjunto de factores matriciais para uma política possível. Na formulação de um caminho para o teatro, nenhum marketing fará o milagre. A questão de fundo é a da construção de um futuro que accione os mecanismos de superação dos factores de atraso. Quais? Índices de público insatisfatórios no teatro de natureza artística, mesmo com os teatros cheios - há pouco teatro na cidade, mesmo havendo muito teatro nos jornais; nível amadorístico de formação técnico-profissional e artística no ensino do teatro e na prática profissional; emprego muito limitado das tecnologias e equipamentos hoje habituais; inexistência de práticas de investigação artística consistentes aliadas a estratégias de impacte social; instabilidade e incompetência na orientação da gestão pública das artes; ausência de projectos com lógicas de continuidade relativamente à escrita dramática nacional e à redescoberta do património português (Gil Vicente não é um autor nacional como o é Molière em França); inexistência de projectos de digressão com incidência nacional; etc..
O contacto com os teatros europeus, a sua história, as práticas artísticas e os sistemas de organização seria um farol. A figura de um "complexo teatral", segundo o modelo do Teatro Stabile ou do Centro Dramático, é a chave do problema. Face ao extenso património desta arte, um continente de textos e arquitecturas, a que se juntou a encenação no século XX, a forma companhia, herdada do século XVI, é um modelo incipiente. A estrutura familiar, mais empresarial ou mais doméstica e tribal, com uma velha tradição, não responde na contemporaneidade à dimensão do teatro. Este modelo alia a possibilidade do exercício da liberdade artística, dada a multiplicidade orgânica das condições de produção, a um impacte social de escala não conhecida entre nós - há teatros nacionais na Alemanha que mantêm em repertório, simultaneamente, seis e sete espectáculos em cena. Com este modelo a liberdade artística aprofunda-se.
Como lá chegar? Convidando companhias, dotando-as dos meios logísticos e técnicos, reformando o perfil de actuação dos teatros nacionais (o São João é um paradigma, mas necessita de reencontrar a autonomia que lhe retiraram) e criando uma distribuição geográfica equilibrada. A solução chama-se reforma do sector público do teatro, dos teatros nacionais e privados com práticas artísticas de interesse público comprovado. Essa nova realidade agiria sobre todo o teatro, criando formas de integração profissional e viabilizando projectos.
Há linhas de acção para um ambiente favorável a uma nova dinâmica. Em primeiro lugar, a assunção do serviço público como uma fronteira. Seguidamente, a utilização da memória como uma bússola na orientação de estratégias futuras. Em terceiro lugar, a necessidade de delimitar linhas na definição do apoio institucional face à natureza diversa dos projectos. Em quarto lugar, a questão da escala, da inserção de cada projecto num todo urbano e cultural. Depois, o profissionalismo, único garante das estratégias de qualificação. Por último, a instituição real da plurianualidade.
Na resposta a estas questões estará o caminho para a chegada do teatro português a um estado adulto. Não chega apelar à participação dos cidadãos, é necessário criar os instrumentos do seu acesso a uma voz qualificada, porque culta. Actor e encenador, director do Teatro da Rainha