Rui Rio e a imprensa
Nos últimos dois meses, o relacionamento catatónico de Rui Rio com a comunicação social tem tido o seu expoente máximo na marcação cerrada que o inigualável site da Câmara do Porto tem feito às opções editoriais do Jornal de Notícias.A obsessão de Rui Rio por tudo aquilo que o JN publica é assinalável, ao ponto de ser questionada a escolha de fotografias em que Rio surge de semblante mais façanhudo, sem aquele esgar genuíno que o caracteriza. Suponho mesmo que a Direcção do PÚBLICO deve andar cheia de inveja. Que diabo! Não é de ânimo leve que se perde subitamente o protagonismo tão arduamente alcançado após um mandato inteiro de constante exposição às irritações destiladas pelo autarca.
Acreditem: mais do que perder tempo a ler blogues ensimesmados - espécie de modernos substitutos do divã na psicanálise das novas tecnologias - ou a sentir o peso frustrante da erudição inalcançável de Pacheco Pereira no seu Abrupto, vale sinceramente a pena ir acompanhando o desenrolar frenético e apaixonante desta novela de cordel protagonizada pelo único político português que "segue desabrido a correnteza das suas convicções e só desagua no mar tépido das vitórias, mesmo que pelo caminho precise de superar difíceis obstáculos" (de tanto citar esta frase da biografia de Rui Rio que fez as delícias do site da autarquia nos seus primórdios, confesso-vos que já o faço de memória...).
Pois o autarca que blindou o seu balneário (os vereadores só podem comunicar com o exterior através do omnipresente gabinete de imprensa) e que resolveu limitar o noticiário municipal "às matérias de inegável interesse público" (desde que esse interesse público, evidentemente, seja definido em privado pela sua própria pessoa) e que só dá entrevistas por escrito (se obedecerem a "critérios de oportunidade" também por si estabelecidos), tem brindado os portuenses mais cibernéticos com autênticas pérolas de elevada estratégia comunicacional.
Ao ritmo de uma epístola por semana, a avalancha já ultrapassa os 20 mil caracteres, com títulos tão apetecíveis quanto "Jornal de Notícias volta a atacar Rui Rio", "JN: Câmara do Porto debaixo de fogo", "Leite Pereira critica site da Câmara", "JN retoma ataque à Câmara do Porto", "JN: Câmara volta a estar debaixo de fogo", "JN incrimina a Câmara do Porto", "JN baixa ao nível da intrigalhada", "JN ataca Vereador do Urbanismo com base em deturpações" ou "JN: Peça por medida".
No começo, o estilo da escrita era pouco elaborado, demasiado frio e distante, quase característico de agência noticiosa. Com o passar do tempo, porém, nota-se que os escrevinhadores de serviço se têm esmerado, recorrendo amiúde a subtilezas quase maquiavélicas - "O jornal, cujas vendas caíram fortemente em 2005, esconde também...", e por aí adiante - e a analogias de fino recorte costureiro: "Na era do pronto-a-vestir, o JN faz hoje uma clássica peça de alfaiate, seleccionada e cortada à medida, para encaixar no modelo que o jornal tem vindo a seguir de ataque à Câmara do Porto".
Quanto tempo mais irá durar esta sangrenta batalha? E quem será o próximo inimigo declarado por Rui Rio, cujo frenesim quixotesco não sobrevive sem uma renovada multiplicação de hostis moinhos de vento?
No meio de tão existenciais dúvidas, sobra uma pergunta ainda maior, um mistério difícil de deslindar, uma perplexidade aparentemente inultrapassável, um paradoxo sem justificação que se veja - sobretudo porque estamos a falar de alguém que, sem poupar na modéstia, diz querer "enobrecer a política, fazendo dela um permanente exercício de seriedade, de pedagogia e, acima de tudo, de coerência com aquilo que realmente queremos e sentimos, mesmo contra ventos e marés".
E a pergunta é a seguinte: para quando um textinho no site da Câmara do Porto, mesmo que só tenha duas ou três linhas, a desmentir a acusação formulada há já alguns meses pelo JN, segundo a qual Rui Rio tentou "repetida e reiteradamente" que a direcção editorial do Jornal de Notícias fosse demitida?
É mentira? É vil calúnia? Ou é apenas uma demonstração inequívoca da demagogia como pressuposto essencial da acção política?