Ilse Losa (1913-2006) Uma escritora entre dois mundos
Morreu ontem, aos 92 anos, a escritora portuguesa de ascendência alemã Ilse Losa, um dos nomes mais significativos da nossa literatura juvenil, mas cuja obra se estende ao romance, ao conto e à crónica. Vivia no Porto desde 1934, ano em que chegou a Portugal, fugindo da ascensão nazi. Por Luís Miguel Queirós
Embora existam precedentes célebres, não é nada vulgar que alguém consiga tornar-se um autor de reconhecida relevância numa língua com a qual só contactou já na idade adulta. É esse o caso de Ilse Losa, que poucas palavras conheceria em português quando a sua condição de judia a obrigou a deixar a Alemanha e a procurar refúgio no Porto, onde desembarcou em 1934, aos 21 anos. Do tempo que viveu no seu país natal, desde a infância passada com os avós numa aldeia próxima de Osnabrück até à sua fuga de uma Alemanha que acabara de levar os nazis ao poder, deixou-nos um notável testemunho no seu romance de estreia, O Mundo em que Vivi, escrito já directamente em português e publicado em 1949. Ficção fortemente autobiográfica, o livro conta a história de uma rapariga judia, Rose Frankfurter - loura e de olhos azuis, tal como Ilse Losa -, que escapa in extremis ao horror dos campos de concentração.
Foi também literalmente no último momento que Ilse Lieblich (o seu apelido de solteira) abandonou a Alemanha. A Gestapo tivera acesso a uma carta em que Ilse criticava Hitler e, após um duro interrogatório, ordenou-lhe que voltasse a apresentar-se seis dias mais tarde. Se tivesse comparecido, o campo de concentração era o destino mais do que provável. Ilse fugiu nesse intervalo. O seu irmão mais velho já vivia no Porto, e o mais novo chegaria pouco depois dela.
Em 1935, casou-se com Arménio Losa (1908-1988), um dos mais relevantes arquitectos modernistas portugueses, e adquiriu a nacionalidade portuguesa.
Óscar Lopes foi um dos primeiros a reconhecer a importância do romance de estreia de Ilse Losa, sublinhando, em O Mundo em que Vivi, a vivacidade do retrato da sociedade alemã nos anos que vão do final da Primeira Guerra até à vitória dos nazis, mas elogiando, também, a sua "escrita inexcedivelmente sóbria e transparente".
No mesmo ano de 1949, Ilse Losa publica Faísca Conta a Sua História, a primeira das cerca de duas dezenas de narrativas e peças de teatro que escreveu para crianças. Em 1982, recebe um prémio da Gulbenkian pelo livro Na Quinta das Cerejeiras, e a mesma fundação atribui-lhe, dois anos mais tarde, desta vez pelo conjunto da sua obra, o Grande Prémio de Literatura para Crianças.
Segundo José António Gomes, professor e crítico de literatura infantil, "Ilse Losa introduziu o realismo na literatura para crianças em Portugal". Num depoimento ontem prestado ao PÚBLICO, recorda ainda que a autora foi pioneira na atenção aos temas ambientais, no livro Beatriz e o Plátano (1976), e recorda "a magnífica parábola sobre a perseguição dos judeus" que constitui o conto Silka, premiado em 1989 pela Bienal de Bratislava, que atribuiu a Maçã de Ouro ao trabalho de Manuela Bacelar, ilustradora de várias obras da escritora. "A Ilse é uma referência no meu trabalho e na minha vida, e lamento muito o seu desaparecimento e o facto de ter sido tão esquecida", disse ao PÚBLICO Manuela Bacelar.
Para José Jorge Letria, Ilse Losa "libertou a literatura para a infância do estigma de uma literatura menor". E Luísa Dacosta realça o facto de a autora se ter "aventurado a escrever em português, o que talvez a fizesse sentir-se uma estrangeira mesmo na língua".
Estrangeira sentiu-se seguramente nesse Portugal salazarista dos anos 30, que descreve no romance Sob Céus Estranhos (1962), cujo protagonista é um judeu alemão refugiado no Porto e que nos dá um magnífico retrato da provinciana "pasmaceira" (termo que o próprio herói do livro utiliza) que era a cidade no final dos anos 40.
Entre as muitas obras de Ilse Losa, podem destacar-se o romance Rio Sem Ponte (1952), ou as narrativas de Aqui Havia Uma Casa (1955), O Barco Afundado (1979) e Caminhos Sem Destino (1991). Ou ainda o livro de crónicas de viagem Ida e Volta. À Procura de Babbitt (1960). Colaboradora de muitos jornais e revistas, Ilse Losa foi também cronista do PÚBLICO, onde manteve uma coluna mensal, desde o lançamento do jornal, em 1990, até finais de 1992.
Além da sua própria obra, Ilse Losa deixa-nos um conjunto de importantes traduções, quer de autores alemães, como Brecht, Erich Kästner, Max Frisch ou Anna Seghers, quer de escritores portugueses que traduziu para a sua língua natal. Com Óscar Lopes, organizou uma antologia da moderna lírica portuguesa, editada em Berlim em 1969. É ainda dela a tradução portuguesa do célebre Diário de Anne Frank.
Apesar de haver decerto alguma verdade no lamento de Manuela Bacelar, Ilse Losa não está assim tão esquecida. A publicação, em 1990, da tradução alemã de O Mundo em que Vivi despertou um grande interesse pela sua obra na Alemanha, cujo Governo a condecorou em 1991 - Portugal outorgou-lhe em 1995 a Ordem do Infante D. Henrique -, e também no seu país de acolhimento não faltam estudos sobre a sua obra, ainda que geralmente limitados a artigos de jornal, ensaios dispersos por obras colectivas ou entradas de dicionários. Um bom ponto de partida é o livro Paisagens da Memória - Identidade e Alteridade na Escrita de Ilse Losa (2001), de Ana Isabel Marques, publicado em 2001, que, além da estimulante leitura que faz da obra de Ilse Losa, inclui uma bibliografia exaustiva dos textos dedicados à autora.
O funeral é hoje, pelas 10h30, no cemitério portuense do Prado do Repouso. com Rita Pimenta