"É incrível como seja lá onde for que sejam descobertas matérias-primas os habitantes locais morram na miséria, os seus filhos se tornem soldados e as suas filhas prostitutas". Isto é dito pelo realizador austríaco Hubert Sauper, que também diz que podia ter feito um filme muito parecido com "O Pesadelo de Darwin" na Serra Leoa "com diamantes em vez de peixe", nas Honduras "com bananas", na Nigéria, na Líbia ou em Angola "com crude". Se ainda não se percebeu, explicite-se que "O Pesadelo de Darwin" é um filme cheio de "agenda" política contemporânea e, já agora (o pormenor do peixe deve ter parecido enigmático), que no seu centro está a popularidade recente (nos restaurantes portugueses, pelo menos) da chamada perca do Nilo. Que não vem do Nilo, como seria de supor, mas do Lago Victoria, entre o Quénia, a Tanzânia e o Uganda. A questão inicial, o "pesadelo de Darwin" que dá título ao filme, é exactamente esta: nos anos 60, uma "experiência científica" (não percebemos se no filme a expressão é empregue com aspas e ironia ou não) introduziu o peixe no Lago Victoria; especialmente voraz, a perca do Nilo desatou a comer os outros peixes do lago e deu cabo do ecossistema, com reflexos no lago e nas margens, o que alterou por completo a vida das populações. Transformado o lago num viveiro de percas do Nilo, gerou-se uma "indústria da perca do Nilo", com baixos custos de produção e enorme retorno (não nos lembramos do número exacto que o filme aponta, mas a quantidade diária de toneladas de perca exportadas para a Europa é impressionante). Hubert Sauper instala-se nas povoações das margens do lago para procurar um retrato do estado das coisas. Evidentemente, no plano das ideias, é um filme com imenso material para gerar discussão (e nalguns casos mais específicos, irritação), ou não funcionasse como uma investigação/demonstração, no terreno (e num terreno concreto), do que é ou pode ser, a um nível local perfeitamente definido, a famosa "globalização" e os seus efeitos. Ou, a um nível porventura mais cínico, uma demonstração de como é verdade o ditado que diz que "o mundo é dos espertos" (embora dito assim pareça ofensivo para os desgraçados dos pescadores locais e demais habitantes, que obviamente não têm nem a formação técnica nem a capacidade financeira para resistir àqueles que, tendo uma coisa e outra, lhes apreciam o delicioso eufemismo que é a "mão de obra barata"). Hubert Sauper não consegue dar ao filme uma verdadeira respiração de "documentário de cinema" e "O Pesadelo de Darwin" acaba por se assemelhar demasiadas vezes a um estilo de reportagem televisiva (competente, a questão não é essa). Também se dispersa de maneira cansativa, em todos os círculos que sucessivamente vai desenhando em torno do centro, a perca transplantada para o lago. Não vale só pelo seu conteúdo informativo e polémico, no entanto, e há duas coisas muito curiosas. Uma, a maneira como Sauper articula a natureza, o incontrolável "pesadelo" darwiniano, e os fenómenos sócio-económicos que ele gera, como se os segundos fossem um prolongamento sem "quebras" do primeiro (e as alusões ao tráfico de armas e às guerras em Àfrica reforçam a dimensão cáotica disto tudo); outra, o peculiar retrato do que pode ser a "globalização" em termos simplesmente humanos, com esta heteróclita galeria de "personagens" que mistura prostitutas de aeroporto, miúdos de rua, pescadores sem emprego, empresários asiáticos, pilotos russos de aviões de carga e emissários da União Europeia preocupados com condições sanitárias e acordos de comércio.
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