Reentrar na atmosfera terrestre é um desafio

O estudo dos plasmas de reentrada representa um desafio crucial para o acesso ao espaço.
É desejável que os astronautas, ou as missões automáticas de recolha de amostras de poeira do Sol ou de um cometa, não tenham o mesmo destino que as estrelas cadentes. Infelizmente, nem sempre isso tem sido evitado, como o demonstrou a catástrofe do vaivém Columbia, em 2003

Quantos de nós, nas curtas noites de Verão, não ficámos já alguns minutos ou horas a observar o espectáculo nocturno das estrelas cadentes que ocasionalmente atravessam o firmamento? Mas uma inspecção mais próxima destes corpos celestes revelaria uma realidade bem mais violenta. Observaríamos rochas incandescentes, desagregando-se sob a acção de um gás, podendo atingir temperaturas mais altas que a superfície do Sol. É graças a este fenómeno que estamos protegidos da grande maioria dos objectos espaciais cuja trajectória cruza a do nosso planeta.Mas o que faz com que o ar em redor de um objecto atinja temperaturas tão elevadas? Trata-se do atrito do ar, que qualquer objecto em deslocação tem de enfrentar. Quando viajamos de automóvel, por exemplo, quanto mais depressa formos, maior será o atrito do ar, e teremos de carregar com mais força no acelerador para contrariar essa força e manter a velocidade.
As coisas complicam-se quando viajamos a velocidades superiores à do som. O ar em frente de um veículo é fortemente comprimido, formando uma onda de choque que transforma a energia de translação (energia cinética) do ar em calor. Trata-se de um fenómeno parecido com o famoso bang sónico feito pelos aviões, quando ultrapassam a velocidade do som (Mach 1).
Ora acontece que qualquer nave espacial que entre na atmosfera terrestre viaja a muito alta velocidade. Um objecto que desce desde uma órbita terrestre, descrevendo uma trajectória parabólica, viaja a três ou quatro quilómetros por segundo. Já quando vêm de mais longe (de outros planetas, ou até de fora do sistema solar - uma trajectória hiperbólica), as naves viajam a velocidades superiores a dez quilómetros por segundo. Este regime de voo é chamado hipersónico, pois corresponde a velocidades mais de dez vezes superiores à do som.
Nestes regimes de velocidades extremas, a energia da onda de choque é suficientemente elevada para aquecer o ar a temperaturas tais que têm lugar reacções químicas de dissociação das moléculas em átomos, assim como reacções de ionização (arranque de electrões das moléculas). Forma-se então aquilo a que se chama um plasma de reentrada, o qual causa a luminosidade intensa das estrelas cadentes. O plasma à frente do nariz da nave causa o chamado blackout, ou bloqueio das transmissões, entre a nave e a Terra. Para cada valor da densidade de plasma, existe um valor limite da frequência, abaixo do qual as ondas de rádio não se podem propagar, o que faz que, durante alguns minutos, os astronautas estejam sem contacto com a Terra.
O estudo dos plasmas de reentrada representa assim um desafio crucial para o acesso ao espaço. É desejável que os astronautas, ou que as missões automáticas de recolha de amostras de poeira do Sol ou de um cometa, não tenham o mesmo destino que as estrelas cadentes. Infelizmente, nem sempre isso tem sido evitado, como o demonstrou a catástrofe do vaivém Columbia, em 2003.
Ao contrário do que possa transparecer de uma primeira análise das inúmeras conquistas dos 50 anos já decorridos da era espacial, o acesso ao espaço não é ainda uma rotina, como não o era o voo propulsionado há cerca de um século. Tal como no caso de um voo aéreo, as fases mais críticas de uma missão espacial são a descolagem e a aterragem. Durante a descolagem, a velocidade aumenta de zero para vários quilómetros por segundo fora da Terra; durante a aterragem, queremos fazer o contrário. Se durante a descolagem se pretende evitar qualquer acidente, com as enormes quantidades de combustível que estão a ser transportadas, na fase de regresso pretende-se evitar que o atrito do ar desintegre o nosso veículo espacial.
Claro que seria sempre possível embarcar uma certa quantidade de combustível para travar o veículo. Contudo, sabendo que para colocar um quilo de carga em órbita são necessários cerca de 12 quilos de combustível à partida da Terra, verifica-se que tal não é exequível. A solução passa então por tentar compreender melhor os fenómenos físico-químicos dos plasmas de reentrada, de maneira a optimizar as protecções térmicas das naves espaciais.
Em particular, nos últimos 20 anos, têm-se feito grandes progressos, com o desenvolvimento de poderosos modelos e ferramentas de cálculo. Contudo, a grande complexidade dos fenómenos físico-químicos encontrados faz com que continue a existir uma certa dose de incerteza no projecto de reentrada de um veículo espacial. Para mais, um novo e grande desafio começa a ser lançado, com a alteração do tipo de missões espaciais: pouco a pouco, estamos a passar de missões de exploração na órbita terrestre para missões de exploração em outros corpos do sistema solar, com condições de entrada atmosférica mais desfavoráveis.
Vários organismos de investigação europeus da área da física dos plasmas estão actualmente a trabalhar em conjunto para estudarem teórica e experimentalmente este tipo de fenómenos. Este projecto científico insere-se no programa de exploração do sistema solar Aurora, patrocinado pela Agência Espacial Europeia (ESA), e no qual Portugal é um dos países participantes. Um sucesso total foi obtido há cerca de um ano, com a entrada da sonda Huygens na atmosfera de Titã, após sete anos de viagem desde a Terra. No âmbito desta missão, foi conduzido um programa de investigação durante cerca de dois anos pela ESA, que no termo deste apostou em várias correcções da trajectória, para assegurar uma entrada segura na atmosfera deste satélite de Saturno, composto por azoto e metano.
O desenvolvimento esperado para o futuro próximo desta ciência permitirá lançar missões mais arrojadas, com maior segurança no "regresso a casa" das naves espaciais, e o envio em segurança de astronautas ao planeta Marte por volta da década de 30 deste século.

Este é o décimo terceiro de uma série de artigos de professores e investigadores do Instituto Superior Técnico, que serão publicados aos domingos, para comemorar
o Ano Internacional da Física

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