Torne-se perito

Quantas vezes tem um homem que

Quantas vezes tem um homem que explicar que não pode explicar a sua poesia?Quantas vezes tem que inventar o seu mito para defender a sua música?
Quanto tempo tem o artista que andar pelo mundo até poder descansar?
Quantas vezes tem o mundo que atirar a realidade à cara do poeta?
Quantas vezes temos de olhar para cima até conseguirmos ver o céu?
A resposta, caro leitor, está no documentário No Direction Home: Bob Dylan, um filme de Martin Scorsese (DVD, Paramount, 2005). É um retrato do artista enquanto jovem, da infância ao símbolo do corte radical que abre a primeira parte do documentário - quando Dylan desafia as pessoas do seu tempo com as perguntas de Like a Rolling Stone: "How does it feel / How does it feel / To be on your own / With no direction home / Like a complete unknown / Like a rolling stone?"
Por um acaso da vida, estive há 20 anos em Duluth, a terra onde Dylan nasceu, e em Hibbing, onde viveu até partir para Minneapolis e depois em direcção a Nova Iorque. Ali, no fim do mundo do estado do Minnesota, onde a paisagem não tem saída, onde o calor no Verão e o frio paralisante do Inverno não deixam pensar, como ele diz, compreende-se o sufoco e o desejo de partir with no direction home.
E a vida do artista torna-se uma viagem sem fim: a metáfora junta-se à jornada física real, uma never-ending tour, digressão sem fim, concertos e mais concertos, mania de não parar: onde está Dylan hoje? Nova Iorque, Bona, Birmingham, Vilar de Mouros, Barcelona, São Francisco? Recebendo um Óscar em Sydney?
No início do filme, Dylan reconstrói o seu passado: "Eu tinha a ambição de partir e encontrar como que uma odisseia de ir para casa algures." O jovem artista como Ulisses sem Ítaca. "Eu decidi procurar esse lar que deixara um tempo antes e não conseguia lembrar-me exactamente onde era." As raízes não estavam lá, estavam na viagem de regresso, na viagem para sempre, o acto da criação: "Mas eu estava no caminho para lá e, encontrando o que encontrei na viagem, foi como eu vi tudo." "Estou muito longe de onde devia estar, por isso estou a caminho de casa." Eterna odisseia. À procura de si. Sem direcção definida. À procura de saber. "Os verdadeiros viajantes são os que partem por partir", escreveu Baudelaire, autor que o jovem Dylan leu, mas "Amargo saber, o que nos dá a viagem!" O viajante nunca se encontra. Procura sempre. O documentário parte em digressão com Dylan em 1966. No direction home, like a rolling stone.
Depois, Dylan interpreta o seu próprio passado libertando-se de amarras. Um disco que ouviu em criança, um disco de country nem por acaso evocando a viagem (Drifting Too Far From the Shore), permite-lhe exprimir o poder da música em libertá-lo até dos laços de sangue: "O som do disco fez-me sentir que eu era outra pessoa. Se calhar eu até nem tinha nascido dos pais certos." E as namoradas lá da terra são como musas de heróis antigos: "Elas mostraram o poeta que havia em mim." E como se chamavam? Nem de propósito: Gloria Story e Echo. História de Glória e Eco, eco, eco no fundo da alma, Eco, a ninfa que amou perdidamente a Narciso. Este rapaz tinha de partir em viagem.
Partiu. Via tudo, absorvia tudo. Aos 20 anos, em Nova Iorque, o génio estava pronto a sair da lâmpada e viajar. Tal como Eça de Queirós, que dizia não ter história, que era como a República do Vale de Andorra, Dylan afirma: "Eu não tinha passado." Coisa de génios: eles criam o mundo, não se deixam criar por ele.
Mas o mundo insiste, insiste em dar-lhes história. E eles têm de dizer, quantas vezes lhes perguntam, que não, que a poesia é a sua própria realidade histórica. Dylan, cantor de protesto? "Estar do lado das pessoas que lutam por alguma coisa não quer necessariamente dizer que se está a ser político." É como diz o cantor folk Tom Clancy: "Ele articulava o que todos nós queríamos dizer e não éramos capazes."
Scorsese insinua visualmente como a poesia se separa do mundo: todos os depoentes do filme são mostrados em ambientes naturais: casa, escritório, bar, comboio. Eles estão no mundo, inserem a história de Dylan no mundo. No seu depoimento, Dylan está como que fora do espaço e do tempo. O fundo desfocado, o grande plano, ele não está ali, fala mitos e metáforas de algum lugar onde parou para descansar ("I"ve been to crossroads"). Mas não pode parar. Só por preguiça ele ousa uma ode a um deus Pã que dança e toca pandeireta, que cante por ele, que o leve "numa viagem no turbilhão mágico do seu navio" ("Mr. tambourin man"). Depois parte outra vez.
Enquanto Eça ou um poeta como Pessoa podiam viver sem que a relação com o público fosse um batuque permanente ritmando doentiamente a actividade criativa, Dylan tem a sua actividade no âmbito da indústria musical - é impossível separar a sua obra da forma como é recebida e dos lugares-comuns vomitados nos media sobre o que é ou deveriam ser êxito, carreira, relação com o público, moda musical, idade. Impossível? Não para Scorsese. Não para Dylan. Diz Dylan na segunda parte do filme de Scorsese: "Eu não lutei por ser popular. Aconteceu." "Eu não ia dar de comer à multidão." Diz o artista Bobby Neuwirth: "A audiência veio ter como o Bob. Isso é uma das coisas que o torna tão único na história da música americana: a audiência veio ter com ele." Dylan outra vez: "Um artista tem que ter cuidado para nunca chegar a um sítio em que pensa estar em algum lugar. Ele tem sempre de saber que está sempre no estado de devir." Sempre em viagem.
Num dos melhores documentários biográficos de sempre, Scorsese fez quatro horas notáveis de cinema-televisão, ou televisão-cinema. Numa altura em que o cinema hollywoodesco parece bloqueado nas suas possibilidades criativas, os cineastas voltam-se para a televisão como media por vezes mais criativo e flexível. E voltam-se para artes e artistas que conseguem sublimar as limitações "terrenas" ou comerciais da criação. Scorsese vê-se ao espelho, vê-se como a um Dylan do cinema, a arte a querer soltar-se do comércio. Como Dylan, como os blues da série extraordinária produzida em 2003, também por Scorsese (The Blues, Canal 2, quintas-feiras).

NOTA: O PÚBLICO não sai no domingo, 1 de Janeiro. Por isso, o Olho Vivo será novamente antecipado para sábado.

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