Paulo Quintela (1905-1987) O "almocreve da Cultura" nasceu há cem anos
Professor de Germânicas, teatrólogo e tradutor, Paulo Quintela cultivou a fidelidade ao texto e aos valores da cidadania
Não há qualquer iniciativa oficial, em Coimbra como no resto do país, a assinalar o facto de passarem hoje cem anos sobre o nascimento de Paulo Quintela, cidadão vertical, germanista, teatrólogo, professor carismático e figura maior da história da cultura do século XX português. Na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC), onde ensinou várias gerações, na sala de aula, no palco e no café, está a ser constituída uma comissão para organizar, já depois de Janeiro de 2006, um evento consagrado à homenagem do professor que fundou o TEUC - o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, do qual foi director artístico durante 30 anos (ver texto ao lado).A comemoração do centenário de Paulo Quintela será uma oportunidade para a Universidade se redimir de só o ter nomeado professor catedrático por distinção depois do 25 de Abril, a poucos meses da jubilação, em 1975. O Estado Novo não gostava de Quintela, que, nas provas de doutoramento, em 1948, prometeu servir "a livre Cultura", sinónimo de "liberdade", e, por via daquela, a "pátria" e o "povo".
José Carlos Vasconcelos, o director do Jornal de Letras, Artes e Ideias, estudou Direito em Coimbra e foi membro do TEUC. Conta que Quintela, um transmontano tão generoso quanto colérico, chegou a exaltar-se perante um reitor que lhe comunicava que as autoridades se recusavam a homologar o nome do professor como director artístico da companhia: "Sua Excelência é burra!", terá exclamado o mestre. Para mais tarde comentar junto de um amigo: "Ao menos, não me esqueci da concordância", terá dito, entre a ironia e a preocupação com a correcção linguística.
Paulo Quintela também se distinguiu por ter tomado o partido dos estudantes nas crises académicas de 1962 e 69. Nesta última, ficou célebre a sua intervenção numa assembleia magna da academia, onde interveio para dizer aos dirigentes estudantis, que acabavam de ser suspensos pelo ministro da Educação, que só os alunos, que os haviam eleito, lhes poderiam pedir contas e destituir. Paulo Quintela, como Teixeira Ribeiro, Orlando de Carvalho ou Luís Albuquerque, esteve ao lado de estudantes perseguidos pelo regime, pagando fianças, testemunhando em tribunal ou abraçando os que partiam na estação, com frequência marcada para a guerra colonial.
Em 1975, Paulo Quintela filiou-se no PS e candidatou-se por Bragança, em lugar não elegível, à Assembleia Constituinte. Autor do livro Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia, o escritor e professor da FLUC Cristóvão Aguiar conta que, em 1977, acompanhou o mestre à concelhia do PS, onde este, antes de se desvincular, desagradado com a coligação de Governo que o partido fizera com o CDS, fez questão de pagar as quotas em atraso. Entre 1982 e 1986, foi distinguido com o título de Grande Oficial e recebeu a Ordem da Liberdade e a Ordem do Infante Dom Henrique.
Reconhecimento do Estado alemão
Filho de um pedreiro e de uma padeira de Bragança, Paulo Quintela gostava de se apresentar como um "almocreve da Cultura", um intermediário entre as culturas portuguesa e, sobretudo, alemã. Assim se referiu a si próprio em 1973, quando ex-alunos e amigos lhe fizeram uma homenagem no Porto, a comemorar o facto de, em Março do mesmo ano, o professor de Coimbra se ter convertido no primeiro português galardoado com a medalha de ouro do Instituto Goethe.
Paulo Quintela frequentou a Pastelaria Central, onde se encontrava com Miguel Torga (ver caixa), Afonso Duarte ou Vitorino Nemésio, talvez o seu maior amigo, cuja morte o feriu profundamente. E foi presença assídua na tertúlia da Brasileira, onde se encontrava com Joaquim Namorado e Luís Albuquerque, entre outros.
Nas aulas, era muito exigente, tão distante quanto se usava na altura e gostava de divagar. Há quem diga que cultivava a pose e a frase de efeito. Sousa Ribeiro, um professor da FLUC que trabalhou na preparação das Obras Completas de Paulo Quintela, desentendeu-se com ele, enquanto aluno, por causa de uma nota. Mas não sentiu que isso o tivesse prejudicado. "Embora nunca desse o braço a torcer, gostava de quem o enfrentava", recorda Sousa Ribeiro.
Aliás, zangas teve Quintela muitas. Não gostava de Jorge de Sena, que lhe criticou uma tradução. E teve "pegas" com António Pedro, por causa de um texto dramático que o professor traduzira - a fidelidade ao texto, ainda e sempre -, e com Aquilino Ribeiro, que fizera troça dos doutores de Coimbra, no Ateneu do Porto.
Mas Quintela era também o homem sensível, que amava a poesia. Gostava de declamar e era capaz de se comover com um poema: "No Sentimento de um Ocidental, de Cesário, ao chegar à parte "embalam nas canastras/ Os filhos que depois naufragam nas tormentas", chorava sempre", recorda Sousa Ribeiro.