belém, cercada por um muro, faz um esforço para viver o natal
Toda enfeitada, Belém esforça-se. Sinos, canções, luzinhas, presépios, prendas. Quando olha em volta, vê um muro de oito metros
em vez do Natal. Os Shomali, católicos com raízes aqui há mais de dois séculos, falam de "uma cidade em dissolução".
Por Alexandra Lucas Coelho, em Belém
A família Shomali está a tentar fazer aparecer o Natal.Sawsan, a mãe, pôs a marinar duas grandes pernas de porco em azeite, alho e ervas.
Qustandi, o pai, compôs um presépio com troncos de videira, aos pés de um festivo pinheiro.
Raed, o primogénito, canta Glória com a sua voz de barítono.
Ramzi, o mais novo, ensaia ao piano para acompanhar o coro de vésperas.
E Rami, o filho do meio, vai voltar de Birzeit, uma universidade que teoricamente fica a 40 quilómetros e na prática a quatro checkpoints de distância.
Católicos palestinianos com raízes em Belém desde 1770, têm uma árvore genealógica pintada à mão no átrio da sua grande casa e retratos de tetravôs que eram donos de terras onde diz a Bíblia que os anjos anunciaram aos pastores o nascimento de Jesus.
Mas enquanto tentam fazer aparecer o Natal, os Shomali falam como as famílias de refugiados que Belém acolheu em 1948, e hoje aqui continuam, em campos de cimento e lama. Falam como todos os que vivem dentro do muro.
"As pessoas estão a esforçar-se para sentir o Natal, mas onde está o Natal?", pergunta Raed, 26 anos, professor de Gestão na Universidade de Belém. "Basta acordar e ver o muro, é suficiente para arruinar o dia. O que é o Natal? Um tempo passado com a família, em segurança. Como, rodeados de oito metros de betão e com 11 colonatos à volta? Em 2002 as pessoas começaram a receber notícias para a confiscação de terras e depois perceberam que era para a construção do muro. Eu estava nos Estados Unidos a estudar. Quando voltei, no ano passado, tive um choque. Não temos espaço para respirar. Sentimo-nos sozinhos. O muro não nos separa só dos israelitas e do resto do mundo, separa-nos uns dos outros, de Jerusalém, do resto da Cisjordânia. No último semestre vi o meu irmão que está em Birzeit só duas ou três vezes."
Muro de Berlim. Fortaleza militar. Instalação nuclear. É com imagens destas que visitantes têm descrito a chegada a Belém neste Natal. O muro de betão fechou-se recentemente à volta da entrada principal da cidade, com torres de vigia, e um novo checkpoint.
Para o passar, os habitantes de Belém têm que ter uma autorização. Em caso algum o podem passar nos seus carros.
Qustandi, professor de Jornalismo (na Universidade de Belém, tal como o filho mais velho e a mulher), publicou em 2000 um guia de Belém, aproveitando muitas das fotografias antigas que herdou.
Meses depois veio a Intifada e hoje só a cidade histórica sobrevive no guia. "Restaurantes, cafés, lojas, hotéis, projectos... 80 por cento morreu. Claro que os israelitas tentam passar uma boa imagem para os estrangeiros e os turistas. Mas um turista que vem cá passar umas horas não vê que para nós Belém é uma cidade em dissolução."
Sawsan, que vem da cozinha a cantarolar as músicas para o coro de Natal, apanha a conversa aqui. "A maioria dos turistas vem em grupos, em ligação com os israelitas, e os lojistas palestinianos pagam-lhes comissões para os trazerem às lojas. Porque só os autocarros israelitas podem passar no checkpoint. E muitas pessoas voltam para dormir em Jerusalém e gastar o dinheiro em Israel."
Lojas fechadasNa Rua da Estrela, que serpenteia monte acima até à Praça da Manjedoura e à Basílica da Natividade, as casas estão lavadinhas e brancas, com as portas de ferro alegremente pintadas de verdes e azuis, desde a recuperação da cidade, para a entrada do novo milénio. Mas são mais as portas de lojas fechadas que abertas.
Historicamente, os cristãos foram sempre a maioria em Belém, mas hoje, entre 30 mil habitantes, são apenas 35 por cento, e a emigração é uma das causas, a par do afluxo de refugiados na criação do Estado de Israel, sobretudo muçulmanos, e do facto dos muçulmanos terem mais filhos.
Os cristãos emigram mais porque têm mais bases familiares no estrangeiro, em geral melhor preparação profissional e mais recursos. E, depois da segunda Intifada, porque houve uma islamização da sociedade.
Mas Belém vive de ser a cidade onde nasceu Cristo (também reconhecido pelos muçulmanos como um profeta). Oitenta por cento da economia assenta no turismo religioso e a convivência mantém-se, necessariamente.
Ontem, dia santo no islão, centenas de fiéis enchiam a Praça da Manjedoura por já não caberem na Mesquita de Omar, que fica mesmo em frente à Basílica da Natividade.
Com a voz do imã projectada pelos altifalantes, os muçulmanos rezavam no meio de decorações de Natal em forma de estrela, dos Reis Magos, da Virgem, do Menino, enquanto os empregados municipais lavavam os edifícios e aparavam as árvores, centenas de crianças recebiam prendas à entrada da câmara, e cânticos de Natal em árabe saíam das lojinhas que vendem figuras bíblicas esculpidas em oliveira.
Amigos muçulmanos no almoço
Entre os 20 convidados que amanhã os Shomali terão a almoçar em casa, "há vários muçulmanos". A grande refeição de Natal, como na maioria das famílias de Belém, é o almoço de dia 25, e as duas pernas de porco que Sawsan acabou de embrulhar, para que tenham tempo de absorver todos os temperos, são apenas uma pequena parte do menu.
Na ampla cozinha cheira a beringelas a assar. "Também comemos peru", diz, tirando um do frigorífico. "Vou recheá-lo com arroz, carne e amêndoas." O almofariz está cheio de nozes, para fazer um bolo de Natal de frutos secos, a fruteira é uma pirâmide colorida porque uma das tradições da época é receber visitas oferecendo fruta e licor. "Mas aos nossos amigos muçulmanos não servimos licor, claro."
Hoje, ao princípio da tarde, como milhares de católicos, os Shomali acompanham a procissão da chegada do Patriarca Latino. Às seis vão a uma primeira missa, junto de casa. Depois, visitam amigos ou parentes que tenham um luto recente, outro ritual natalício. E à meia-noite, a missa principal. Que, para os Shomali, desta vez não será na Basílica da Natividade, mas na Universidade de Belém, onde o núncio apostólico, representante do Vaticano, celebrará, vindo de Jerusalém. "É comum aqui as pessoas irem a duas missas, e entre ambas fazerem visitas", diz Quistandi. "Por isso não há grande tempo para um jantar de Natal."
À frente da procissão do patriarca vão centenas de escuteiros. Raed vem do quarto com a sua farda pendurada num cabide, muito engomada, bandeira palestiniana bordada à frente. "Eu costumava ser chefe de grupo", diz. "Mas este ano não vou vestir a farda. Não tenho ânimo, e não quero estragar a festa às crianças. Traga cem portugueses e deixe-os a viver aqui por um ano. Ficam com a mesma falta de esperança. O muro é o contrário da paz. É a contradição do Natal."